View Colofon
Original text "Sonia ridică mâna" written in RO by Lavinia Braniște,
Other translations
Mentor

Manuela Zamith

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Sónia levanta a mão

Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Lavinia Braniște

Por estes lados, as pessoas são muito desconfiadas. Mas não se sabe se noutros sítios a iriam receber de braços abertos. As pessoas do lado dele. Os do outro grupo. Não conhece, no círculo dela, casais das gerações anteriores, em que os dois sejam amigos, e não inimigos, mesmo que fiquem juntos até à velhice. Algures no mundo talvez existam os que ainda ficam amigos a vida toda e para além dela, mas são poucos, extremamente sortudos e bem escondidos aos olhos dos outros, de tal forma, que, olhando à tua volta, tu, jovem, possas estar quase convencido de que quem está ao teu lado chegará a destruir-te a alma. E se os dois se separam, deixam filhos e depois reconstroem as suas vidas, serão ainda mais inimigos um do outro, e os novos parceiros não podem, não têm como poder, acha Sónia, não detestar essas reminiscências das vidas anteriores, os filhos.

Mesmo assim sendo, ei-la a subir as escadas de um prédio sórdido, comunista, até ao terceiro andar, onde para por alguns momentos, não para recuperar o fôlego após o esforço, mas para ganhar coragem para tocar à campainha. Tem ao ombro um saco de pano e dentro dele um pacote de café comprado na loja, que sabe que não vai oferecer, porque não esteve atenta e comprou cápsulas para máquina em vez de café moído. Olhou só para a embalagem, para que fosse bonita e especial, olhou também para o preço, para que não fosse barato, mas irá acabar por picar as cápsulas com a faca e recuperar o café lá de dentro, para preparar o seu próprio café, em casa do avô. Portanto, veio de mãos a abanar.

A quarta esposa do seu pai parece-se com uma viúva da bibliografia escolar.

Sónia esperava que ela fosse diferente. Mais elegante, mais vaidosa, mais cheia de cremes.

A mulher, de seu nome Anisoara, ainda usa roupas de luto e parece consumida por um sofrimento sincero.

Convidou-a a entrar e sentaram-se ambas no sofá da sala.

Recebeu a Sónia por gentileza, disse “sim” a meia-voz quando a madrinha a contactou, mas é óbvio que não tem energia para nenhum diálogo e por certo espera que seja Sónia a dizer o que quer e porque veio.

Não lhe oferece nada.

Sónia tem o reflexo de pôr tudo por palavras. Para ela é importante poder articular aquilo que sente. Mas quando tu pões por palavras coisas que não foram feitas para serem organizadas ou coisas para as quais pura e simplesmente a língua não tem recursos, arriscas-te a conduzir tudo numa direção errada. Por vezes parece mais grave do que de facto é. Outras vezes é levado para o insignificante. E, outras vezes, já não sai aquilo que era e nessa altura assustas-te ou perdes-te pelo caminho.

Sónia veio a casa do pai porque queria ver como ele viveu. Como é a sua casa, como é o espaço onde ele acordava e onde regressava para encontrar refúgio. Mas agora não sabe como juntar isso numa resposta para o “porque é que vieste?”

Quer conhecer o cheiro da casa dele tal como queria conhecer o cheiro da CNSAS na altura em que ainda era muito inocente e pensava que no CNSAS se entra sozinho nos arquivos e te caem em cima toneladas de processos. Quando lhe parecia tão simples saber qualquer coisa. Antes de descobrir que no CNSAS deves dizer exatamente porque é que vieste e o que é que procuras, assinar muitos papeis e depois aguardar meses até que a máquina te traga os documentos dos arquivos. Que deves pedir autorização para tirar cópias. Prestar juramento de que os dados com caráter pessoal que te são facultados serão usados única e exclusivamente para o fim declarado.

Procurou o sentimento de clausura e sufocou e esperou que de tudo isso pudesse sair alguma coisa. Um estado de alma.

O apartamento do pai está quase vazio. Tem dentro somente o necessário.

Das informações combinadas que tem da mãe e, particularmente, da madrinha, Sónia sabe que o pai, algures após o ano de ’89, chegou a trabalhar para a junta de freguesia. “Para tratar de coisas” na junta, parece. Descobriu também que passou de um partido para outro algumas vezes e que, numa dada altura, foi o gestor dos mercados da pequena cidade de província. A sua imagem, que se alternava na mente de Sónia, modificou-se novamente. Porque mudou de partidos? Era assim tão oportunista? Agora, quando olha para o apartamento modesto, estranhamente, o desapontamento é a dobrar. Estava à espera de abundância. Opulência, até. Assim, porquê comprometer-se num mundo livre, se por livre se poderia entender “não como antigamente” ?

Tentou imaginar que conversas teria tido com o pai antes das eleições. Foi a primeira vez que fez esse exercício, de conversa com o pai, e a primeira coisa em que pensou foi no que teria para debater neste período frágil das campanhas eleitorais, quando tantos filhos discutem com os pais. Quando em tantas famílias, em tantas pessoas, crescem espinhos de ódio, como seres da escuridão, nestes períodos bizarros que transformam alguns deles numa espécie de lobisomens. Poderiam ter falado de maneira civilizada sobre as opções de cada um?

Desde que cresceu, teve quase sempre a certeza de que a existência do pai na vida dela ter-lhe-ia mudado a maneira de ser, tê-la-ia tornado mais forte, mais resistente às diversas intempéries, como se a simples presença de um homem em casa pudesse fazer levitar no ar um tipo de testosterona de que as mulheres se poderiam servir livremente, quando precisassem de ser assertivas. A mãe não soube fazê-la forte, até pelo contrário, atirou-lhe com os seus medos e vulnerabilidades, criou-a com uma mentalidade de mulher sozinha e atormentada. Segundo a Sónia, a única coisa útil que aprendeu com ela foi a saber sempre onde se esconder para chorar.

Mas aquilo que até agora acreditava ser, de certeza absoluta, um fator de estabilidade, uma âncora, o pai, de repente parece-lhe que podia ter sido extremamente desestabilizador. Talvez as tivesse levado ainda mais à deriva. Talvez a mãe tenha feito bem. Não só em se separar, mas também em mantê-lo longe. Certo é que Sónia nunca irá saber como teria sido com ele e o melhor que podia fazer agora era confiar na mãe. Dar-lhe agora toda a confiança que lhe negou nos anos de maturidade, quando infeliz consigo própria, procurou culpados contra quem se revoltar e encontrou a mãe, porque era a única pessoa que conhecia.

Com ou sem ele, talvez tivesse sido exatamente como é hoje, igualmente exposta e insegura, incapaz de ser assertiva quando lhe parece que deveria ser assertiva, incapaz de uma revolta ainda maior do que partir um vaso preferido. Afinal, leu estudos sobre gémeos que, separados à nascença e adotados por famílias diferentes, chegam a ter uma vida incrivelmente parecida. Frequentar a mesma faculdade ou divorciar-se ambos umas três vezes.

Vendo-a assim, sentada com as palmas das mãos nos joelhos juntos sem dizer nada, Anisoara finalmente decide iniciar a conversa.

— Disse também à Cláudia quando passou por cá, várias vezes. Deixou-me no testamento somente o apartamento. Eu também lho teria deixado se a situação fosse ao contrário, foi assim que assinamos os papeis. Não sei o que a Cláudia tinha imaginado, o documento não podia ser contestado.

Sónia não diz nada. Não veio acusar esta mulher por ter ficado com a casa. Deveria pará-la e explicar-lho.

— Amou-a ? perguntou ela, em troca.

— Também está cá o meu trabalho, antes de mais por o ter aturado, diz Anisoara e parece que os olhos lhe ficaram enevoados pelas lágrimas.

— Perdoe-me se a pergunta for muito intrusiva...-Tinha curiosidade de...se era capaz de afeto.

— Todas as outras, ele amou-as. Quando era mais novo... Talvez à tua mãe...

Todas as mulheres, esposas e filhas, têm a impressão de que as outras tiveram mais amor por parte dele, porque se negaram a acreditar que ele não tinha sentimentos.

Pronto, é isso afinal. Alguns homens não têm sentimentos.

— Posso ver as coisas dele? perguntou Sónia.

— Porquê?

— Tenho curiosidade... - Só vim por isso, não se preocupe. Para ter uma ideia.

— Porque vieste só agora? Porque não o procuraste durante a sua vida?

More by Cristina Visan

O regresso

As coisas descarrilaram em agosto, num domingo de manhã, quando os primeiros transeuntes da Place du Parvis Notre-Dame, empregados dos cafés da zona, viram o objeto, algo como uma bala gigantesca assente no solo com a ponta virada em direção à catedral e a parte traseira na direção da esquadra de polícia. Numa primeira estimativa, o projétil media por volta de vinte metros de comprimento e cinco de diâmetro. Os empregados de mesa e de bar aproximaram-se com curiosidade, deram uma volta, encolheram os ombros e foram abrir os restaurantes. Isto foi por volta das sete. Por volta das oito, os pad...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Alexandru Potcoavă

Trilogia do sexo errante

Diante do portão da tia Nicoleta havia muita gente vinda para acompanhar o tio Titi no seu último caminho, o tio Titi que, embora gostasse da pinga, era gente boa, alegre, grande azar para a sua mulher, gente nova, nunca se sabe o que Deus traz, mas a sua mulher cuidou dele, todos os dias lhe punha uma compressa fria na testa, e até o levou a todos os médicos, e olhe que até neste momento, o faz com muito esplendor, vide o caixão de que madeira boa, bordo parece-me, e como trouxe mulheres para cozinhar durante três dias para o banquete de despedida, e foi sozinha ter com o padre Cristea e bate...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Cristina Vremes

O zumbido

No comboio, na última parte da viagem, tinha visto pela janela pegajosa as bordas do céu. Levantou-se para ver também do outro lado da carruagem e aproximou-se do homem adormecido com a cara escondida atrás do cortinado e com a mão direita firmemente pousada na pequena mala de viagem, que estava no assento ao lado. Sim, da sua janela via-se o mesmo. Um cobertor compacto, azul índigo, num plano paralelo ao campo extenso, cheio de molhos secos. E na sua orla, um azul aberto e claro, como um mar afastado, suspenso entre o céu e a terra. Por cima da camada índigo, estava sol. Quando se levantou,...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Lavinia Braniște

O reencontro

Já chega. Arrumei as malas, o fato na capa, a calçadeira de sapatos e entreguei a chave. Até casa tenho de conduzir durante seis horas, mas o caminho de regresso é mais curto. Abri a janela e, com a cabeça de fora, atravesso cada vez mais rápido a avenida principal da cidade. No fresco da noite e da velocidade, o ar corta-me a face e isso recorda-me a aspereza da esponja desmaquilhante. Tenho uma tez sensível e não suporto com facilidade o tratamento que os apresentadores do noticiário têm de fazer para não se parecerem com uma lua cheia de brilho – é-lhes aplicada uma camada de base em pó, qu...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Alexandru Potcoavă

Alguns minutos à deriva

O dia começou mais cedo do que tinha pensado. Tinha posto o alarme para tocar às 5.56 por várias razões. Queria ter tempo para a meditação matinal e também, para poder aguardar trinta minutos que o comprimido que melhora as funções da tiroide fizesse efeito antes do café, e depois, começar uma série de exercícios que combinam o queimar das gorduras com a tonificação dos músculos, usando somente o próprio peso, sem esquecer, entretanto, de ligar o esquentador elétrico, porque o aquecimento da água leva umas quatro horas, o que me dá tempo de sobra para acabar também a sequência de ioga para ab...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Cristina Vremes
More in PT

Os Seres Vivos

Capítulo 1 A mamã morreu sozinha e devagar. A causa da morte, dizem os médicos,  foi uma intoxicação. A mamã intoxicada. Grande estupidez. Não discuti  com os médicos, limitei-me a assinar os papéis e a tratar do enterro. Se havia  algo que a minha mãe conhecia bem era a sua farmácia. Sempre foi exata  com as doses. Não se enganava. À menina, por enquanto, contamos-lhe a  versão oficial, a da intoxicação. Um dia contar-lhe-ei eu mesma que a avó  dela se suicidou.   A menina esteve presente em todos os momentos, depois de lhe dar  a notícia levámo-la ao tanatório. Esteve colada às minhas perna...
Translated from ES to PT by Matias Gomes
Written in ES by Mariana Torres

O final feliz

      Foi a chuva que me acordou. Meteu-se no meu sonho e no início eu não sabia de que mundo vinha. Eu a nadar na infinidade do Pacífico. Sei que era o Pacífico, conheço bem o Oceano Pacífico da televisão. Eu a nadar no turquesa e no cristal. É assim mesmo que dizem nas reportagens, turquesa e cristal. Na anca levava umas fitas que apertavam o fato de banho com umas continhas coloridas penduradas. Recordo-me dele das fotos, o meu primeiro fato de banho, ainda de menina. Enquanto eu fazia o nó, o céu abriu e deixou cair uma cortina de água. As gotas pesadas caíam na minha cabeça e nos meus bra...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Jasna Dimitrijević

A ponte

Todas as estações de comboio têm um relógio. Na verdade, têm mais do  que um. Em cima da bilheteira fica o principal. Depois, na gare de  embarque, estão os mais pequenos. Os úteis, pois são cúmplices da nossa  preguiça em tirar o telemóvel do bolso ou consultar o relógio de pulso.   As crianças ficam fascinadas por estes relógios. Como o ponteiro  dos segundos roda sem parar, acaba por ser o único momento em que  conseguem ver o tempo a passar. Olham o ponteiro a subir e, à medida que  se verticaliza, os seus coraçõezinhos batem mais depressa e os olhos  esbugalham-se. Quando, por fim, o indi...
Written in PT by João Valente

Uma vida a meio

Casablanca, 1954 Ela filtra o ruído das crianças a brincar lá fora e todos os dias guarda alguns sons aos quais se agarra obstinadamente. Colhe os poucos sons que penetram através das paredes. Passados alguns meses já conhece os vizinhos todos, embora nunca saia do quarto. Sabe que estão sempre a aparecer credores em casa dos vizinhos do lado, mas não adianta porque o homem não quer pagar. «Nem que me arranquem primeiro os órgãos do corpo e me matem depois» é o que o ouve dizer à mulher depois de os credores saírem. Quando ouve estas coisas tem a sensação de ser um elo na história e nos segre...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Os Meninos Escritores

Quase tudo o que aconteceu nesse dia passa-se aqui. Estou com o indicador  apontado à cabeça. Muitos anos depois, enquanto levo o meu filho a  descobrir o gelo, ainda recordo todos os acontecimentos daquele único dia  como «o fuzilamento».  Ninguém morreu. As pessoas eram perigosas, especialmente as  crianças pequenas, penduradas nas árvores. Os pés a balançar — e era da  língua no meio da boca que viriam os piores crimes.   Ouvir dói, caminhar é um truque. Caminhemos.   Mesmo os pequenos ditadores envelhecem. Os filhos coabitam a  terra com os pais, há milhões, talvez milhares de anos. Imagin...
Written in PT by José Gardeazabal

O Sol quando Cai

I  Na manhã de 11 de julho de 1978, parte em direção a Barcelona um camião  com um carregamento de propeno líquido. O camião vem de uma  pequena cidade na Catalunha e é conduzido por um motorista que, no  meio da sua cara brilhante, usa um grosso bigode. Já trabalha há vinte anos  para a mesma empresa, com o mesmo camião, e conhece a rede rodoviária  de Espanha de cor. Para evitar portagens, escolhe sempre as estradas  interiores.  As botijas de gás não foram feitas para ficar muito tempo ao sol, e uma  enorme cisterna com vinte e cinco toneladas de propeno, apesar de só  poder conter dezano...
Translated from NL to PT by Xénon Cruz
Written in NL by Joost Oomen