View Colofon
Original text "Het is oké" written in NL by Aya Sabi,
Other translations
Mentor

Arie Pos

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Está tudo bem

Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Ela leva a sua máquina de café consigo. Ela não sabe quem é. No entanto, sabe, sim, que é uma mulher com uma máquina de café expresso da marca De’Longhi Magnifica S ECAM20.110.B totalmente automática. Preta e cinzenta. Porque já não sabe mais nada, todos os pormenores são importantes. De manhã, assim que a máquina começa a moer os grãos de café com o seu ruído infernal, ela fica logo acordada – e os vizinhos também.

Comprou a máquina em segunda mão no Coolblue e, durante quatro dias, passou as manhãs à espera dela, junto à janela. Ao mesmo tempo que fazia no site, de cinco em cinco minutos, um refresh do track and trace. Depois começou a fazer um refresh do track and trace e das suas mensagens no Twitter já que, meu Deus, como lhe apetecia beber um cappuccino com suficiente espuma – mas não demasiada – feito com um bom café. Todos os cappuccinos que tinha bebido até esse momento eram tão fracos! E os expressos eram sempre demasiado fortes. Dizia então que estava impaciente e que era uma apreciadora de café, uma “apreciadora de café impaciente que bebe o seu café num copo de vidro e não numa chávena de porcelana”. Não sabia que a sua perturbação de ansiedade voltava ao de cima porque estava a perder-se e que essa máquina de café era a sua nova obsessão para que não tivesse de admitir que estava a perder o tino. Foi procurar no Google: como é que o café em grão se pode manter fresco mais tempo? Como é que se consegue uma camada de espuma perfeita? Ainda antes de a máquina chegar já tinha lido o manual de instruções online. Quando se tem uma cave (mesmo que a cave esteja inundada metade do ano), um sótão, três quartos de dormir e uma cozinha de 20 metros quadrados, é fácil uma pessoa perder-se. Enquanto olhava pela janela, à espera de outra coisa, não precisava de olhar para dentro. Ela própria não precisava de fazer nada.

Ela leva a sua máquina de café consigo. Fecha a porta atrás de si. É uma cena de filme, mas não há câmaras para documentar isto, não é uma atriz famosa que recebe milhões para fazer este papel. Mais: não há nenhum argumentista que saiba o que vai acontecer amanhã de manhã. Ela não sabe o que vai acontecer. Só sabe que tem de ser. Também sabe que Virginia Woolf teria tido orgulho nela, embora preferisse que a vida fosse mais fácil, que nem tudo fosse uma luta tão grande, que tivesse sido uma mulher normal de quem alguém normal pudesse gostar de uma maneira normal.

Não devia ser tão difícil, por isso tentava ser uma mulher fácil para apanhar as migalhas do amor ou coisa parecida. O abuso com cobertura de açúcar sabe igualmente doce. Se ela disser quatro vezes “desculpa”, há de ficar tudo bem. Desde que consiga entender por que razão alguém se comporta de uma maneira cruel e irracional, aquilo não aconteceu realmente. Ele não é um bem-amado, é um personagem com dores e angústias infantis que vêm à tona e cuja vítima dócil ela quer ser. O amor é um sacrifício, não é? Se ela não o compreende, deve ser porque não se esforça suficientemente para o compreender. Entretanto manobra-se por entre as discussões, as expectativas e as brigas. Está constantemente a mudar de postura para conseguir caber no espaço que lhe é reservado, de maneira a não derrubar nada, de maneira que nada que possa perturbar minimamente a paz comece a vacilar. Dá tudo de si. Imola-se: para a fogueira com a mulher que ela construiu durante décadas, deitem-lhe fogo, um dia tudo isso há de valer a pena. Mas não chega. Mesmo que não reste mais nada. A sua terapeuta há de dizer que ela parece agarrar as pessoas pelo colarinho, sacudi-las e gritar: “Gosta de mim, porra!”. Ela esperará até que a mulher emoldurada no ecrã do Zoom lhe diga que não é preciso nada disso. Mas a sua terapeuta, por sua vez, vai dizer que não sabe se isso é preciso. Por que é que ela não diz claramente que tem a certeza de que não é preciso agarrar as pessoas pelo colarinho? Que ela tem beleza que chegue dentro dela para ser amada, que não precisa de se esforçar tanto para conquistar alguém? Ela quer ser para outra pessoa o que ninguém foi para ela própria. Há quem queira ser astronauta ou mãe. Ela quer ser a eterna amada, a bem-amada até a eternidade. Vai apontar na sua lista dos not-to-do: A última coisa que farei é ficar à espera. De uma mensagem, da palavra que quero ouvir, da confirmação, do amor que mereço. Vai tomar nota disso, para que um dia consiga não o fazer, tal como um outro escreve na lista dos to-do o que um dia vai fazer mesmo.

Ela leva a sua máquina de café, fecha a porta atrás de si e enfia a chave da casa na caixa do correio. A chave chia ao cair ao longo do metal. É a ponte proverbial que está a ser queimada nesse momento. Pode-se sempre nadar – ela tem todos os diplomas de natação – ou construir uma nova ponte, mas para quê voltar para trás no tempo se se pode avançar? Além disso, uma ponte incendiada irradia luz. Tal como as mulheres na sua vida que lhe hão de perguntar todos os dias como está. Estou bem, dirá ela, surpreendida com as suas próprias palavras. Hão de pensar que ela se dá ares de forte, mas também não pode mentir dizendo que está mal, porque não é assim. Ela pensa mesmo em tudo. No Ano Novo vai enviar a cada uma delas uma mensagem personalizada, dizendo que poderão contar com ela se precisarem, mas que espera que nunca vão precisar tanto dela quanto ela precisou delas no ano passado. Vai aprender palavras novas – como “mortification” ou “the narcissist”, “lovebombing” e “ruminating”. Vai desaprender outras palavras – como “pena” e “vergonha” e “a procura constante de reconhecimento” (isto são cinco palavras, mas pronto, tudo bem). Vai colocar as palavras umas ao lado das outras e umas por baixo das outras. Vai fabricar frases com elas, quanto mais palavras conhecer, mais textos poderá produzir. Vai saber que nada do que lhe aconteceu diz alguma coisa sobre quem ela é. Ela é o que quiser fazer com isso. Está divorciada – é um fato – mas não é uma mulher divorciada, como se fosse um estado permanente. Ele não pode marcá-la com um ferro, ela não é uma vaca. Mas acha horrível que haja gente que anda à caça do que está dentro dela, daquilo de que nunca teve consciência e que nunca viu, mas que pelos vistos está suficientemente visível para ser abusado: a sua eterna sensação de culpa, a sua procura de reconhecimento, a sua sensação de não valer nada, o seu desejo de ser vista, a sua dependência do amor. É horrível que haja pessoas que estejam tão vazias por dentro – nenhuma emoção, nenhuma empatia, nenhuma personalidade – que se sintam atraídas por tudo o que ela tem de sobra, que têm de se alimentar do que ela tem a mais. Leu artigos que dizem que deve considerar isso um elogio. Que deve ser uma pessoa especial. Mas ela não quer ser especial. Mete-lhe nojo a falta de honestidade no mundo: se houver literalmente falta de alguns fragmentos no cérebro dele, nunca haverá remédio, nunca se saldarão as contas. Afinal não foi ele que compôs o seu cérebro, não foi ele que comeu uma parte dos seus miolos. Ele é que é a vítima. Ela é meramente um dano colateral.

Ela leva a sua máquina de café consigo, fecha a porta atrás de si e enfia a chave da casa na caixa do correio. No fundo devia estar a chorar, pensa, mas não chora. Devia pensar menos no que deveria fazer, pensa. Durante muito tempo a vida de mulher era simples. Nasce-se e morre-se. Entre um e outro momento acontece tudo aquilo sobre o qual a própria mulher não tem nada a dizer. Simples não quer dizer fácil. A vida de mulher nunca é e nunca foi fácil. Simples, sim: se há só um caminho, não se pode perder. Não se trata tanto do que se altera especificamente para a mulher – que pode conduzir um automóvel, que pode estudar e talvez um dia ter o mesmo salário que o homem – nem da sua posição que aumenta ou diminui dentro do patriarcado, nem qual é a luta que ganha e qual é a que perde, os passinhos mínimos para a frente e às vezes um passo gigante para trás. Não. Trata-se da mudança dentro de uma única vida e como a mulher tem isso nas suas próprias mãos.

São as sinalizações de prioridade na estrada, as saídas à esquerda e à direita, os sinais de paragem e os desvios. É o perder-se. Deixou de haver um único caminho. É a ramificação dos trilhos, os possíveis pontos em que se cruzam e onde comboios de alta velocidade podem chocar e explodir em peças metálicas. Foi o que aconteceu agora. São as cancelas, as luzes intermitentes, as filas. São os círculos. Andar às voltas, ter tonturas, mas nunca em lado nenhum se sentir em casa. Está tudo bem. O caos na sua cabeça, os enigmas no seu coração. O paradoxo que ela é. Está tudo bem. Sempre haverá dias em que ela perde o tino e, nesses dias, se estiver calor, há de ir buscar um café gelado que vai beber junto às escadas da igreja enquanto olha fixamente para os transeuntes. Há de passear de regresso ao seu quarto, cozinhar para si própria e desfrutar da normalidade desses dias. Da angústia e do tédio fará respetivamente confiança e tranquilidade. Compreenderá o que o poeta Lucebert quis dizer com “Tudo o que tem valor é vulnerável”. E então vai repetir o que por esta altura já saberá, para, agora sim, tentar resistir:

1. Ela recusa o silêncio.

2. Ela recusa a comodidade e o hábito.

3. Ela recusa a indiferença e a amargura.

4. Ela recusa todas as etiquetas e nomes e os becos sem saída.

5. Ela recusa ceder, recusa por água no vinho, mas também a embriaguez.

6. Ela recusa os antolhos e a arrogância, mas ocupa todo o lugar que pensa merecer, que merece mesmo.

7. Ela recusa diminuir-se para que os outros se possam sentir maiores.

8. Mas nem cada luta é a sua.

Ela leva a sua máquina de café consigo, fecha a porta atrás de si e enfia a chave da casa na caixa do correio. Está a cair a noite e a rua está deserta. Ninguém a vê partir. Não há ramos de flores de despedida, nem cortejo triunfal. A menina ferida dentro dela quer ouvir que ela agiu bem, a mulher que a envolve sabe que ela age bem, ela deixa de lutar.


Texto das inserções no texto:

1. Olá. Bem-vindo aos Correios!

Agradecemos que responda a umas perguntas para que o/a possamos ajudar melhor.

2. Olá! Podem ajudar-me com isto? Dizia aqui que a minha encomenda seria entregue no sábado, mas agora não diz mais nada: 323211191400038556970030

3. Aluguei um quarto. Segui em frente.

4. Melhor assim. Agora estás tu no controlo.

5. Madness

6. ZARABI, da OUM.

More by Lut Caenen

Uma vida a meio

Casablanca, 1954 Ela filtra o ruído das crianças a brincar lá fora e todos os dias guarda alguns sons aos quais se agarra obstinadamente. Colhe os poucos sons que penetram através das paredes. Passados alguns meses já conhece os vizinhos todos, embora nunca saia do quarto. Sabe que estão sempre a aparecer credores em casa dos vizinhos do lado, mas não adianta porque o homem não quer pagar. «Nem que me arranquem primeiro os órgãos do corpo e me matem depois» é o que o ouve dizer à mulher depois de os credores saírem. Quando ouve estas coisas tem a sensação de ser um elo na história e nos segre...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

O retrato

A casa tinha uma porta de carvalho e uma fachada imponente. Não havia nomes na campainha. David demorou um pouco a descer e eu fui olhando a rua à minha volta. Era calma e branca, não se comparava com o bairro ao pé do canal onde a Sam e eu morávamos. Eu oscilava entre o devaneio e a irritação, como me acontecia muitas vezes quando era confrontada com coisas que não me podia permitir. Ele abriu a porta e sorriu-me. Tinha a camisa aberta. Eu subi as escadas atrás dele e fui novamente envolvida pelo cheiro dele: nozes e terebintina. O atelier estava tão desarrumado como da outra vez, mas havia...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

Não quero ser um cão

Escrevo no teclado: «PÔR FIM A UM DESGOSTO DE AMOR». Vejo histórias de pessoas mas não quero histórias. Quero soluções, não quero compaixão. Isto tem de parar agora. «TRANSFORMAÇÃO», escrevo. O Google diz que há transformação na matemática e na genética. Opto pela segunda e com isto faço a minha primeira escolha. Estou farta deste corpo que já foi beijado por demasiadas pessoas, que talvez até esteja estragado. Tenho sido muito imprudente com ele, demasiado descomprometida, tem de acabar, tem de ser outro e melhor. Transformação genética. «Cura com sumos» aparece no ecrã. «Transforma-te numa v...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Em casa

O moinho, o caminho para o rio, o poço, os cavalos, as vacas e o trigo. Os baldes rachados cheios de tomates vermelho vivos, os boiões com as tampas bem apertadas cheios de legumes em pickles para o inverno. O estreito rio Severski Don, que alinha os campos todos, que empurra a Rússia contra a Ucrânia, que mantém o mapa unido, da mesma maneira que o meu bisavô Nikolaj cose os casacos com agulha e linha. O vento nas velas do moinho, as meninas do komsomol na praça central da aldeia. Dançam. De braço dado mantêm-se em equilíbrio inclinando o corpo para o lado e elevam-se do chão exatamente com a...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Linguado

Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem. No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar. Ninguém dirá «72 segundos!» É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios. Estou sentada no fundo da piscina e olho para ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker

Fios

A procura não começa de forma consciente. Sinto-me ligada a ela de uma forma perturbadora, inexplicável, e o seu desaparecimento deixa-me sozinha frente às minhas interrogações. Ao acordar pergunto-me onde dormirá e como vive e continuo a pensar nela, masturbando-me doce e suavemente entre os lençóis enquanto olho para as nuvens pela janela basculante. Quando passo pelas barracas de fruta no nosso bairro, vou tocando nas laranjas com as pontas dos dedos, até que encontro uma que me lembra a sua pele, uma com os poros perfeitos. Aterrei nas suas aulas de yoga devido às minhas constantes dores ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

Todas as pessoas se tornam irmãos

Quando vi o Andrei afastar-se, comecei a gostar dele. Vi a sua mochila preta a abarrotar que ele transportava como um escudo sobre as costas. A mochila estava tão cheia que se percebia logo que ele não estava a caminho de nada, que não ia a lado nenhum. Se tivesse ido para as montanhas assim, a mochila ia desequilibrá-lo, podia puxá-lo para trás, e lançá-lo no abismo. Os fechos éclair da mochila estavam velhos e parecia que iam rebentar a qualquer momento. Eu imaginava que a mochila ia abrir-se de repente, como um airbag, uma almofada de ar que começava a crescer, cada vez maior, e que se tran...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Yelena Schmitz

A evolução de um dente do siso

Mais 47 noites O assistente do dentista tira o gancho da minha boca. – Está a ver isto? – pergunta quase com orgulho. O gancho está coberto com uma camada de saliva acinzentada. – Isto saiu da bolsa. É uma palavra estranha para designar um buraco entre a gengiva e um dente do siso. Uma bolsa parece uma coisa grande, onde se pode guardar chaves, e talvez até gel para as mãos ou um telemóvel. Tudo o que está dentro da minha bolsa são restos de comida triturados com alguns meses. O dentista aparece pouco depois e aponta para o meu maxilar no ecrã do computador. O dente do siso inferior do ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Calcário

Ora, está visto que leva muito tempo para uma cabeça de chuveiro ficar entupida com calcário. Agora que me balanço aqui, com o tubo do chuveiro enrolado à volta do pescoço, meio pendurado no corredor, meio pendurado por cima das escadas, penso: se todos os meus amigos tivessem visto a casa de banho, tinham percebido logo. Se todos tivessem subido uma única vez ao andar de cima, como fez a Ema naquela tarde, teriam olhado para a cabeça de chuveiro, teriam aberto e fechado a torneira, teriam visto a divisória de vidro calcificada do duche, teriam reparado nos pelos da barba feita à pressa no lav...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Empalhar um corpo

Debaixo da nossa pele há mundos inteiros. Se é que se pode confiar nas ilustrações. Às vezes não tenho a certeza. Agarro na minha clavícula. Fica toda espetada para fora quando encolho os ombros. Faço isso muitas vezes. A clavícula é um ossinho sólido mas fino. Podia parti-lo. Talvez não com as mãos nuas, mas se lhe desse uma pancada com um objeto pesado, com aquela estátua de pedra maciça, por exemplo... Aí era de certeza. Não é preciso muito para acabar com tudo. Basta engasgarmo-nos uma vez e já está. Para onde é que vão os bocados de comida que entram no canal errado? Além das amígdalas pe...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker
More in PT

Finalmente tens um quarto só para ti

Estou desconfortável, mas sem arriscar mexer-me para não te acordar.  Alongo as costas e atenuo a moinha. Estou meio sentado na borda da  cama, deixando o colchão à tua disposição. Caíste num sono profundo e  aproveito para te afagar os cabelos com meiguice. Não gostas que o faça  quando estás acordado.   Era no sofá que me desforrava. Nos momentos em que quase  adormecias, embalado por um dia de correrias e brincadeiras, punha-te a  ver desenhos animados. Nessa altura, enchia-te de cafunés. Aceitavas os  meus mimos por estares num estado de semiconsciência. Deixavas-te estar,  chuchando ruido...
Written in PT by João Valente

Expedição do fogo de artifício

Eis uma passagem do primeiro capítulo "Reunindo forças para a fuga", da novela-reportagem “Expedição ao fogo de artifício”, ou “A respeito da União Europeia e dos jovens”, a qual será publicada ainda este ano pela Editora Petr Štengl. (...) Por falta de experiência, entrei no clube logo após a abertura, quando a malta estava ainda apenas ganhando ânimo nos bares vizinhos. Até agora, só os efeitos de luz deambulavam pelo chão deserto, e o techno-set introdutório do DJ lembrava mais os mantras de um monge budista do que qualquer coisa satânica. Pelo reflexo húmido do chão, era óbvio que meia ho...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Ondrej Macl

Residence

Apartamento 11  O MENINO  Aquele menino, olhai bem para ele.  Todos os verões, aquele menino tem mais um ano.  Todos os verões, o castanho dos seus cabelos é aclarado pelo sol num  vermelho ténue, de reflexos claros. Todos os verões, de manhã, enche os  pneus da sua BMX e pedala dentro da Residence, ao longo do muro de  pedra atrás do qual se esconde e espia os da sua idade escoicear uma bola no  campo de terra batida. Gritam palavrões de todo o tipo. Palavrões que o menino nunca disse.  A Residence é composta por dois pequenos edifícios de três pisos,  idênticos. Um o reflexo do outro. A div...
Translated from IT to PT by Ana Cristino
Written in IT by Maurizio Amendola

Manobra

É fim de janeiro, um sábado, um ano depois de teres deixado o vaporizador  de arroz em casa dela. Enches duas canecas de café e tiras as fatias de pão da  torradeira. O açucareiro está na penúltima prateleira do armário em cima  do fogão. Quando te esticas para lá chegar, o teu ombro faz um som  enjoativo. Ela levanta os olhos do telefone, que está pousado ao lado dos seus óculos, em cima da mesa de jantar. Pões o açucareiro em cima da mesa,  pedes licença e choras na casa de banho. Se expirares lentamente, quase não  se conseguem ouvir os soluços. Um eco, se tanto. Um segredo que partilhas  c...
Translated from NL to PT by Xénon Cruz
Written in NL by Simone Atangana Bekono

A Aguardente que mata

DE LIVRO DE CONTOS: A AGUARDENTE QUE MATA DISCLAIMER: Os seguintes excertos são de um livro de contos composto por seis ciclos (Uma notícia incomum, As aves não sobrevoam os subúrbios, Os esboços do minibus, A aguardente que mata, Pela boca, Fizeram bem em bombardear-nos). Cada um dos ciclos contém cinco contos. Os contos condensam os protagonistas e os acontecimentos, e entrelaçam-se entre si no espaço.  CICLO AS AVES NÃO SOBREVOAM OS SUBÚRBIOS     As Casas da cultura nas terras pequenas foram todas convertidas em lojas. Em frente delas há sempre três ou quatro homens de chinelos abibas d...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Ana Marija Grbic

Todos os bichos do campo

Como era habitual, naquela manhã acordou com fome. Os grasnidos dos patos que sobrevoavam o telhado ressoaram nas paredes do dormitório e a miúda sentou-se na cama. Os patos tinham chegado a casa da sua avó vindos de longe, talvez de outro continente, agitando as suas asas. De um dia para o outro, tinha deixado de ir à escola e mandaram-na para ali, com a sua avó, que vivia junto a um lago, a quilómetros da aldeia mais próxima. Ela não interessava a ninguém. Os seus pais procuravam intimidade, ou estavam a trabalhar, lá na cidade, não sabia bem. Aquilo de que não duvidava era dos tremores do s...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings