View Colofon
Original text "Alle mensen worden broeders" written in NL by Yelena Schmitz,
Other translations
Mentor

Arie Pos

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Todas as pessoas se tornam irmãos

Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Yelena Schmitz

Quando vi o Andrei afastar-se, comecei a gostar dele. Vi a sua mochila preta a abarrotar que ele transportava como um escudo sobre as costas. A mochila estava tão cheia que se percebia logo que ele não estava a caminho de nada, que não ia a lado nenhum. Se tivesse ido para as montanhas assim, a mochila ia desequilibrá-lo, podia puxá-lo para trás, e lançá-lo no abismo. Os fechos éclair da mochila estavam velhos e parecia que iam rebentar a qualquer momento. Eu imaginava que a mochila ia abrir-se de repente, como um airbag, uma almofada de ar que começava a crescer, cada vez maior, e que se transformava num paraquedas que o puxava para cima e o levava para onde queria ir.

No primeiro ano da escola secundária todos os alunos andavam com mochilas pesadas às costas, ligeiramente inclinadas para trás, as correias das mochilas ainda compridas à volta dos ombros. Na etiqueta toda a gente escrevia o seu nome. Alguns escreviam o seu nome não no interior mas do lado de fora da mochila, com uma caneta de feltro, como se quisessem defender a sua propriedade, balizar um território. Colegas de turma que pertenciam ao mesmo grupo de amigos escreviam o seu nome nas coisas uns dos outros. Quem não escrevia o nome na capa de alguém era como se não existisse. Na sala de aulas, o meu olhar cruzava-se com o olhar do rapaz que estava sempre calado. Era o único com penugem no queixo e tinha sobrancelhas escuras, que pendiam como telheiros por cima dos olhos.

Agarrei na caneta de feltro dele e escrevi o meu nome no seu estojo. Ele pegou na minha caneta e escreveu o seu nome no meu estojo. Tudo tinha de ser marcado.
Deixávamos o nosso nome em todo o lado. Nos braços e nas pernas uns dos outros, nas solas dos sapatos, nos assentos do autocarro, nas portas das casas de banho das meninas, nos bancos do ginásio, nas paredes ao lado do portão da escola. Deixávamos o nosso nome como prova, para mais tarde, quando seguíssemos o nosso caminho sozinhos. Eram gritos para que não nos esquecessem, era um pacto. Enfiávamos mensagens nos livros uns dos outros, eu enfiava poemas nos ténis dele, guardava bilhetes de autocarro e de comboio. Tínhamos a ideia de escrever uma carta, enterrá-la na areia e desenterrá-la mais tarde. No mundo tudo estaria às avessas, mas a nossa letra estaria lá, um pouco desvanecida, mas ainda legível.

Conheci Andrei numa praça de Bruxelas. Vestia uma camisa branco sujo e uma gravata azul. Umas calças de fazenda como as que os homens usavam há cinquenta anos.
Sapatos de verniz. À primeira vista parecia um cavalheiro à moda antiga. Podia trazer uma pasta, uma bengala ou um monóculo. Perguntou-me se eu tinha um minuto. Estava à procura de alguém que falasse neerlandês. Os olhos dele lembravam-me alguém. Parecia que nos conhecíamos desde há muito mais tempo.

A sua mochila pesada atraiçoava-o, tal como o seu relógio. Era uma coisa de plástico vermelha e velha, um relógio de criança, como aqueles que se tiram de uma máquina de agarrar brindes numa feira popular ou num parque de diversões. Devia ter trazido uma pulseira de ouro à volta do pulso, com vidro verdadeiro, ou aço brilhante, não um mostrador de plástico.

Era um homem com quem eu normalmente nunca teria falado.

Abriu a mochila e folheou uns papéis. Papéis dobrados dentro de papéis, uma espécie de livro feito por ele próprio. Todas as folhas estavam rabiscadas com letras pretas, aproveitando todos os espaços em branco, com apontamentos em diversas línguas. Havia números de telefone e nomes, frases e datas, listas e pontos de exclamação. Pescou um papelinho de entre os papéis e abriu-o.

À primeira não consegui ler. Estava minuciosamente escrito em carateres cirílicos, às vezes riscado, frases ordenadas como se fossem estrofes. As letras não estavam alinhadas. Li algures: “todas as pessoas se tornam irmãos”. Ele apontou e riu-se, falou de Schiller e de Beethoven. Eu tinha pensado que ele queria que eu lhe explicasse uma coisa prática, uma consulta médica, um formulário ou indicações para ir a algum lado, mas era uma tradução de Schiller, feita por ele, em quatro línguas. A Ode à alegria. O hino da União Europeia.

Tous les humains deviennent frères – murmurou.

– Todas as pessoas se tornam irmãos – disse eu.

– Se tornam ou serão?

– Pode ser das duas maneiras.

– Todas as pessoas se tornam irmãos.

Cantou as palavras devagarinho. Eu ia corrigindo o neerlandês. As frases deslizavam-me dos lábios e Andrei olhava atentamente a maneira como eu mexia a boca, como formava as palavras. Escrevi o texto em neerlandês no seu papel. Ele escreveu a frase em romeno para mim. A mão dele tremia um pouco, hesitante, mas a caligrafia era arrebatada, vibrante. Trocámos os papelinhos. Depois ele escreveu o seu nome no meu papel. E eu o meu no dele, como um ritual silencioso. Quando pus a tampa na caneta, olhei para o relógio no meu pulso e para os ponteiros prateados que brilhavam ao sol.

– Vou para…

A minha voz ficou presa na garganta. Ia dizer “Vou para casa”, mas no último momento engoli a palavra “casa”. Não houve nenhuma referência a casa nem à cama, evitámos o tema. Ele disse adeus e seguiu caminho, como uma tartaruga, com a mochila preta como uma casa às costas.

No dia seguinte procurei-o em cada esquina. Tinha pensado ir com ele ao museu ou tomar um café. Comecei a acreditar que voltaríamos a encontrar-nos, que o acaso faria com que voltássemos a cruzar-nos. A cidade transformava-se diante dos meus olhos e dividia-se em dois grupos. Nas ruas andavam pessoas com e sem papéis. Não sabia onde poderia encontrá-lo novamente e fui em direção ao centro. Ao lado do parlamento havia homens jovens vestidos de fato. Por cima das suas cabeças flutuavam bandeiras europeias. Traziam um cartão com o nome no casaco, carregavam pastas e falavam inglês. Andavam para trás e para frente junto ao edifício com o telemóvel encostado ao ouvido. No reflexo do edifício dos congressos vi-me a mim própria do outro lado. Os homens mostravam o seu badge na portaria, entravam e saiam do hall, levantavam a mão e entravam sem fazer ruído em táxis, desapareciam atrás de vidros blindados, em direção às embaixadas, aos lobbies dos hotéis ou às mansões.

Uns dias depois recebi um email de Andrei cheio de poemas. Escrevia sobre flores, estrelas, amizade e pássaros. Tinha passado os seus poemas romenos pelo Google Translate e enviava-mos em quatro línguas. Não fazia ideia onde tinha encontrado o meu endereço nem de onde poderia ter enviado os emails.

Na mesma semana, marcámos um encontro na praça. Ele usava outra gravata e trazia na mão umas flores que tinha apanhado. Estávamos sentados num banco e olhávamos para os pombos que voavam por cima de nós. A voz dele era rouca e tremia um pouco, tal como a sua letra.

– Quando vim para cá, tinha sete pens USB, agora tenho quatro.

Mexia na fivela do seu relógio de plástico e olhava para mim de soslaio. Algures pelo caminho tinha perdido três pens, com a sua certidão de nascimento, o certificado da escola secundária e o seu diploma. Havia uma mossa no mostrador. Passava a mão por ele enquanto me contava que tinha adormecido na rua e que tinha sido assaltado.

– Tinha uma chave. Roubaram-ma.

Estava sentado à minha frente e endireitou a gravata e alisou as dobras das calças. Em seguida apontou para os pombos por cima de nós e calou-se.

Só mais tarde é que percebi que a chave era de um cacifo na Roménia, onde estavam todos os seus documentos originais e montes de fotografias, com os seus pais, os avós, os irmãos, as irmãs, as tias, os tios, a sua cara de bebé. Sem essas coisas todas não havia prova da existência do Andrei.

Pensei nos álbuns de fotografias em casa dos meus pais. As últimas fotografias que foram coladas no álbum datavam de quando eu tinha treze anos. Depois disso guardava-se pouca coisa, toda a gente gravava as suas imagens em cassetes de vídeo, de que se perdia o aparelho, em pens que se tornavam ilegíveis, em discos externos que se apagavam por acidente, ou na cloud, impalpável, de que ninguém sabia onde se encontrava. Toda a gente guardava as fotografias no telefone, só para si próprio. As imagens eram sombras, miniaturas que abríamos às quatro da manhã e fechávamos a seguir.

Andrei pediu-me que fizesse uma foto de nós os dois e que a imprimisse para ele. De preferência na praça, ao pé dos pássaros, porque dava bem connosco. “Todas as pessoas se tornam irmãos”, murmurou enquanto fizemos a foto, os olhos cheios de fé. O hino da União Europeia, que sempre me tinha soado leve e alegre, parecia-me agora áspero e cheio de tristeza, como uma breakup song. Desde que encontrei Andrei, ouvia-o em todo o lado. A versão orquestral utilizava-se no Festival da Canção, no campeonato de futebol ou na Festa Nacional. Ouvia a voz de Andrei nos instrumentos de sopro. Ninguém conhecia o texto de cor, só o Andrei.

Do outro lado do canal vi homens com mochilas aos ombros que se arrastavam como tartarugas, mas não iam a lado nenhum. Vestiam várias camadas de roupa, calçavam sapatos gastos e olhavam para o chão em silêncio. Por cima das suas cabeças brilhava o sol. Nos anos anteriores tinham sido tão invisíveis para mim como o ar, nem sequer transeuntes, mas árvores, ladrilhos do passeio, nuvens. Agora via-os um por um. Eram tantos que parecia que formavam uma massa, uma horda, um coro. No reflexo da água via as silhuetas deles. Os homens avançavam lentamente ao longo do cais, nunca olhavam para trás, desapareciam ao longe. Estavam aqui há quanto tempo? Há quanto tempo é que as costas deles não descansavam? Quanto tempo era preciso ficar acordado para enlouquecer completamente?

À noite, na cama, pensava na cara dele. As minhas costas estavam direitas e descansavam no colchão, perguntei-me onde ele estaria agora.

Andrei tinha construído uma barraca por baixo dum viaduto na cidade. Dizia que fazia bem dormir ao ar livre. Nunca o levei para casa. Pensei no que ele tinha dito essa tarde.

– À noite, quando estou deitado de costas, olho para cima e vejo dois pombos.
Beijam-se, ficam juntos, sem que ninguém lhes peça.

O nome dele era Andrei e tinha uns sessenta anos. Dizia que tudo se ia arranjar. Era bibliotecário, químico, operário da construção civil, motorista de autocarros, sem-abrigo e dançarino, fazia piruetas e reviravoltas, saltava para cá e para lá, deixava-se cair de joelhos. Era infinitamente mais forte do que eu. Tinha a força de um cavalo de tiro, um diamante brilhante, vestia uma camisa branco sujo e uma gravata, com uma mochila preta e sapatos de verniz. Tinha a cara dum velho romeno, mas de perto mudava aos poucos, por detrás dos olhos havia fontes de luz, lâmpadas de calor, a boca dele era a boca duma pessoa amada, as sobrancelhas eram sobrancelhas escuras que pendiam como telheiros por cima dos olhos.

Pensávamos um no outro no mesmo momento, tenho a certeza. Pode-se dirigir os pensamentos um do outro, com a condição de se pensar suficientemente um no outro. Se se acordar à noite com a cara de alguém diante dos nossos olhos, pode-se ter a certeza de que o contrário também acontece. Estabelece-se então uma linha direta de um coração para o outro. Às vezes essa linha puxa-me pelo coração. É quando me lembro da mochila do Andrei. Passeia com ela pela cidade. Puxa as correias da mochila e a mala abre-se, explode como um airbag, uma almofada de ar, cada vez maior e maior, não é um paraquedas, é um castelo no ar que o puxa para cima, cantando e rindo acena para mim, todas as pessoas se tornam irmãos, grita, com o meu papelinho nas suas mãos, tous les humains deviennent frères, e ele sobe por cima das ruas de Bruxelas, por cima do parlamento, por cima do canal, por cima dos banquinhos, dos pombos, das árvores, das nuvens, a caminho das estrelas, cantando, acenando.

More by Lut Caenen

Uma vida a meio

Casablanca, 1954 Ela filtra o ruído das crianças a brincar lá fora e todos os dias guarda alguns sons aos quais se agarra obstinadamente. Colhe os poucos sons que penetram através das paredes. Passados alguns meses já conhece os vizinhos todos, embora nunca saia do quarto. Sabe que estão sempre a aparecer credores em casa dos vizinhos do lado, mas não adianta porque o homem não quer pagar. «Nem que me arranquem primeiro os órgãos do corpo e me matem depois» é o que o ouve dizer à mulher depois de os credores saírem. Quando ouve estas coisas tem a sensação de ser um elo na história e nos segre...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

O retrato

A casa tinha uma porta de carvalho e uma fachada imponente. Não havia nomes na campainha. David demorou um pouco a descer e eu fui olhando a rua à minha volta. Era calma e branca, não se comparava com o bairro ao pé do canal onde a Sam e eu morávamos. Eu oscilava entre o devaneio e a irritação, como me acontecia muitas vezes quando era confrontada com coisas que não me podia permitir. Ele abriu a porta e sorriu-me. Tinha a camisa aberta. Eu subi as escadas atrás dele e fui novamente envolvida pelo cheiro dele: nozes e terebintina. O atelier estava tão desarrumado como da outra vez, mas havia...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

Não quero ser um cão

Escrevo no teclado: «PÔR FIM A UM DESGOSTO DE AMOR». Vejo histórias de pessoas mas não quero histórias. Quero soluções, não quero compaixão. Isto tem de parar agora. «TRANSFORMAÇÃO», escrevo. O Google diz que há transformação na matemática e na genética. Opto pela segunda e com isto faço a minha primeira escolha. Estou farta deste corpo que já foi beijado por demasiadas pessoas, que talvez até esteja estragado. Tenho sido muito imprudente com ele, demasiado descomprometida, tem de acabar, tem de ser outro e melhor. Transformação genética. «Cura com sumos» aparece no ecrã. «Transforma-te numa v...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Em casa

O moinho, o caminho para o rio, o poço, os cavalos, as vacas e o trigo. Os baldes rachados cheios de tomates vermelho vivos, os boiões com as tampas bem apertadas cheios de legumes em pickles para o inverno. O estreito rio Severski Don, que alinha os campos todos, que empurra a Rússia contra a Ucrânia, que mantém o mapa unido, da mesma maneira que o meu bisavô Nikolaj cose os casacos com agulha e linha. O vento nas velas do moinho, as meninas do komsomol na praça central da aldeia. Dançam. De braço dado mantêm-se em equilíbrio inclinando o corpo para o lado e elevam-se do chão exatamente com a...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Linguado

Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem. No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar. Ninguém dirá «72 segundos!» É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios. Estou sentada no fundo da piscina e olho para ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker

Fios

A procura não começa de forma consciente. Sinto-me ligada a ela de uma forma perturbadora, inexplicável, e o seu desaparecimento deixa-me sozinha frente às minhas interrogações. Ao acordar pergunto-me onde dormirá e como vive e continuo a pensar nela, masturbando-me doce e suavemente entre os lençóis enquanto olho para as nuvens pela janela basculante. Quando passo pelas barracas de fruta no nosso bairro, vou tocando nas laranjas com as pontas dos dedos, até que encontro uma que me lembra a sua pele, uma com os poros perfeitos. Aterrei nas suas aulas de yoga devido às minhas constantes dores ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

A evolução de um dente do siso

Mais 47 noites O assistente do dentista tira o gancho da minha boca. – Está a ver isto? – pergunta quase com orgulho. O gancho está coberto com uma camada de saliva acinzentada. – Isto saiu da bolsa. É uma palavra estranha para designar um buraco entre a gengiva e um dente do siso. Uma bolsa parece uma coisa grande, onde se pode guardar chaves, e talvez até gel para as mãos ou um telemóvel. Tudo o que está dentro da minha bolsa são restos de comida triturados com alguns meses. O dentista aparece pouco depois e aponta para o meu maxilar no ecrã do computador. O dente do siso inferior do ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Está tudo bem

Ela leva a sua máquina de café consigo. Ela não sabe quem é. No entanto, sabe, sim, que é uma mulher com uma máquina de café expresso da marca De’Longhi Magnifica S ECAM20.110.B totalmente automática. Preta e cinzenta. Porque já não sabe mais nada, todos os pormenores são importantes. De manhã, assim que a máquina começa a moer os grãos de café com o seu ruído infernal, ela fica logo acordada – e os vizinhos também. Comprou a máquina em segunda mão no Coolblue e, durante quatro dias, passou as manhãs à espera dela, junto à janela. Ao mesmo tempo que fazia no site, de cinco em cinco minutos,...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Calcário

Ora, está visto que leva muito tempo para uma cabeça de chuveiro ficar entupida com calcário. Agora que me balanço aqui, com o tubo do chuveiro enrolado à volta do pescoço, meio pendurado no corredor, meio pendurado por cima das escadas, penso: se todos os meus amigos tivessem visto a casa de banho, tinham percebido logo. Se todos tivessem subido uma única vez ao andar de cima, como fez a Ema naquela tarde, teriam olhado para a cabeça de chuveiro, teriam aberto e fechado a torneira, teriam visto a divisória de vidro calcificada do duche, teriam reparado nos pelos da barba feita à pressa no lav...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Empalhar um corpo

Debaixo da nossa pele há mundos inteiros. Se é que se pode confiar nas ilustrações. Às vezes não tenho a certeza. Agarro na minha clavícula. Fica toda espetada para fora quando encolho os ombros. Faço isso muitas vezes. A clavícula é um ossinho sólido mas fino. Podia parti-lo. Talvez não com as mãos nuas, mas se lhe desse uma pancada com um objeto pesado, com aquela estátua de pedra maciça, por exemplo... Aí era de certeza. Não é preciso muito para acabar com tudo. Basta engasgarmo-nos uma vez e já está. Para onde é que vão os bocados de comida que entram no canal errado? Além das amígdalas pe...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker
More in PT

A Tapioca

Foi o ronco do motor da carrinha da associação que anunciou que era hora de almoço naquele dia em que o sol de tanto queimar não se via. O velho estava debaixo da figueira, envergando uma camisa muito suja toda desabotoada, com um riso irónico na boca fechada para segurar o cigarro. Ficou a ver a brasileira - duas grandes manchas de água debaixo dos braços e as costas da farda igualmente ensopadas - sair do veículo; ir buscar as marmitas e dirigir-se para o anexo que funcionava como cozinha onde era hábito ele estar. — Tio João! Tio João! O riso a contrair todas as rugas do rosto, abrindo re...
Written in PT by Daniela Costa

Esmeralda da depressão

ESMERALDA Velas, em vez de candeeiros. Baldes, em vez de bidés. Abortos acidentais, legais e com fartura. Era a Idade Média e dava-se mais um parto caseiro. Feliz, nasceu luz e tratava-se da primeira menina com olhos azuis. A primeira vez, nascidos na terra, por debaixo do céu celeste, oculares tons do que está por cima, e não por baixo. O primeiro milagre da estética, os olhos castanhos e/ou pretos do reino nunca tinham visto nada assim. A senhora veio à rua. Trazia hortaliças biológicas numa mão, o recém-nascido na outra. Queria chegar à Igreja para mostrar aquilo, talvez o padre soubess...
Written in PT by Luis Brito

Amanhã

Deitada de costas, no conforto macio dos lençóis, com os olhos fixos num ponto invisível do tecto do quarto, Carlota tentava a custos regular a respiração que se mantinha alterada desde que o sonho ansioso que estava a ter a despertou. Já nem se lembrava do que realmente estava a sonhar, só se recordava da sensação desesperada que a obrigou a acordar. E, desde esse despertar abrupto a meio da noite, que ela tentava, de todas as maneiras que conhecia e se lembrava, baixar o ritmo cardíaco, até aquele momento sem sucesso. Desistiu, empurrou a coberta para trás e levantou-se da cama, sem antes o...
Written in PT by Patrícia Patriarca

Bárbaros no Império Romano

Porque caiu o Império Romano? Esta pergunta atormentou a civilização  europeia em toda a sua história, a par (de modo por vezes explícito, por  vezes subentendido) com a reflexão sobre as consequências que aquele  acontecimento longínquo tem no presente. Impressionados pelas ruínas  monumentais de Roma e instruídos sobre a sua herança imaterial, olhámos  com admiração as suas conquistas económicas, tecnológicas e culturais: e  perguntámo-nos qual teria sido a evolução da civilização ocidental se a  queda do Império não tivesse modificado as condições individuais de vida  e redimensionado drast...
Translated from IT to PT by Ana Cristino
Written in IT by Fabio Guidetti

Sónia levanta a mão

Por estes lados, as pessoas são muito desconfiadas. Mas não se sabe se noutros sítios a iriam receber de braços abertos. As pessoas do lado dele. Os do outro grupo. Não conhece, no círculo dela, casais das gerações anteriores, em que os dois sejam amigos, e não inimigos, mesmo que fiquem juntos até à velhice. Algures no mundo talvez existam os que ainda ficam amigos a vida toda e para além dela, mas são poucos, extremamente sortudos e bem escondidos aos olhos dos outros, de tal forma, que, olhando à tua volta, tu, jovem, possas estar quase convencido de que quem está ao teu lado chegará a dest...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Lavinia Braniște

Alguns minutos à deriva

O dia começou mais cedo do que tinha pensado. Tinha posto o alarme para tocar às 5.56 por várias razões. Queria ter tempo para a meditação matinal e também, para poder aguardar trinta minutos que o comprimido que melhora as funções da tiroide fizesse efeito antes do café, e depois, começar uma série de exercícios que combinam o queimar das gorduras com a tonificação dos músculos, usando somente o próprio peso, sem esquecer, entretanto, de ligar o esquentador elétrico, porque o aquecimento da água leva umas quatro horas, o que me dá tempo de sobra para acabar também a sequência de ioga para ab...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Cristina Vremes