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- "Comunione" translated to IT by Valeria Parlato,
- "Communie" translated to NL by Heleen Oomen,
- "Comuniune" translated to RO by Oana-Dana Balaş,
Comunhão
— Será aqui?
— No papel está esta morada, não te diz alguma coisa?
— Eu lembro-me disto como um descampado. Teria sido mais fácil com o nome do restaurante.
— Deu-to quando te ligou.
— Tem de ser aqui. Há muitos carros — respondi, pondo o sinal intermitente, decidido a estacionar.
— Telefona à tua irmã e tiramos as dúvidas.
— Não o guardei porque pensava que não vínhamos. Nem sequer conheço a criança.
— Tiveram a gentileza de nos convidar. Pode ser uma boa altura para tu… Já sabes…
— Já sei. Já sei — interrompi-a, sem vontade de mais reprimendas. — Que horas são?
Luz tirou o conjunto de maquilhagem da carteira e pintou os lábios olhando-se no espelho da pala.
— Já devem estar no primeiro prato — disse, olhando a porta do restaurante pelo retrovisor.
— Fumamos um a meias enquanto acabo de me maquilhar e depois entramos, parece-te bem?
Peguei num cigarro e acendi-o. Então pu-lo nos seus lábios enquanto ela guardava as pinturas. Com a outra mão rocei a beira inferior do seu vestido. Luz fumava com um sorriso.
— Não devia ter vestido esta roupa, pareço um coveiro.
— Vai correr bem, vais ver — disse, pousando-me o cigarro na boca. — Tens de lhes demonstrar que mudaste.
— Já tomava um White Russian. Principalmente para os nervos. — Então terei de dizer à tua irmã que te ponha talheres de plástico — brincou.
Fez-se um silêncio.
— Vá, não fiques assim.
Entrámos no restaurante de mãos dadas e fomos diretos ao balcão. — Já estão no salão — disse o empregado sem olhar para nós. Como não nos mexíamos, indicou uma porta transparente ao fundo do bar.
Luz agarrou-me a mão e puxou-me para a sala de jantar. Através da vidraça víamos sombras misturadas com um bulício que soava mais intimidante à medida que nos aproximávamos da porta. Travei-a antes de abrir.
— Vamo-nos embora — supliquei, apertando-lhe a mão. — Não sejas tonto, estou a morrer de fome.
Ela abriu a porta da sala de jantar; os gritos e os risos, as conversas em voz alta, o chocar dos copos e o tilintar dos talheres deram lugar a um rumor ao nível da mesa que se enredava com os olhares dos comensais. Havia mais de cinquenta pessoas. Comecei a suar.
— Sou a Luz, a namorada do Jaime.
Estas poucas palavras aliviaram todas as pessoas, que voltaram aos seus risos, aos seus brindes, aos seus gritos e aos seus pratos. As mesas estavam dispostas em forma de quadrado à volta de todo o salão, deixando uma abertura num extremo para que os empregados passassem para servir no centro. Entre a parede e os encostos das cadeiras não havia espaço para a passagem.
Ao fundo do salão vi a minha mãe. Tentei aproximar-me dela para beijá-la, mas a mesa era demasiado larga e não podia sair de onde estava sentada a menos que fizesse mover-se metade dos comensais, ao que me neguei. Como nenhum dos dois chegava à cara do outro, resolvemos dar a mão durante uns segundos.
As minhas irmãs cumprimentaram-me como se nunca tivesse acontecido nada. Bea, a mais velha das três, aproximou-se de mim com a menina, que vestia o seu estúpido vestido branco, e a menina beijou-me. — Celia, este é o teu tio Jaime.
— E o presente?
— O quem?
— O presente — repetiu a menina.
Secou-se-me a goela. A minha irmã pegou na filha pelos ombros para a levar de novo para a mesa, mas Luz foi mais rápida: — Olha o que te comprámos, Celia. — Deu-lhe um pacotinho embrulhado em papel brilhante.
A menina desapareceu com o presente entre as mãos. Eu sorri por me ter safado. Não compreendia como Luz me tinha convencido a vir. — A menina está linda com o seu vestido branco, não está? — disse a minha irmã.
— A imagem autêntica da pureza — respondeu Luz.
Com muita dificuldade passámos entre a parede e os encostos das cadeiras, seguindo Bea. Aproveitei para reparar no pescoço dela: a cicatriz persistia, quase enraizada, depois de tantos anos. Recordei o metal a roçar lhe a pele.
Ela disse-nos que nos poderíamos sentar na esquina por onde os empregados entravam para o centro da mesa, junto aos familiares mais próximos, mas só havia lugar para um. A minha irmã olhou para o marido, que estava ao lado do assento livre.
— Não há problema — disse ele. — Põem-se outros talheres na esquina e está feito.
Eu ofereci a Luz o lugar e esperei que os empregados trouxessem talheres e uma cadeira para mim.
Estive um bocado a observar como os outros devoravam os camarões e o presunto. Javier, o marido da minha irmã, também permanecia de pé; de vez em quando fugia-lhe um olho para o decote de Luz, depois olhava para mim.
— Então, como vão as coisas?
— Podes sentar-te, se quiseres — respondi.
Ele suspirou ruidosamente enquanto caía na cadeira e começou a comer. Conversava com Luz enquanto eu permanecia exposto aos olhares dos primos, dos tios, dos muitos desconhecidos, todos a julgar-me entre cada garfada.
Os empregados passavam velozes nas minhas costas. Um deles chocou comigo e os petiscos que trazia estiveram quase a cair ao chão. — Está na passagem — disse-me, sem pousar a bandeja.
— Traga-me a porcaria da cadeira e assim não estorvo — respondi, tentando não levantar a voz.
Luz agarrou-me o pulso. Cerrei o punho até cravar as unhas na palma da mão.
— Aqui não se pode sentar, é a passagem dos empregados — disse-me o chefe de sala. — Mas do outro lado há um lugar. Pode sentar-se lá.
— Vem comigo — disse, acenando a Luz. — Não poderiam mover-se todos um lugar para que ela e eu ficássemos juntos? — As pessoas já estão a comer, Jaime — rosnou a minha irmã. — Eu não estou a comer — repliquei, levantando um pouco a voz. — Já sabia que isto ia acontecer — disse ao marido, que tinha os dedos vermelhos de descascar camarões. — Contigo é sempre a mesma coisa, Jaime.
— Há dois lugares livres, um em cada ponta. Se toda a gente se mover um lugar, eu posso sentar-me com a Luz. — Bati na mesa com o punho enquanto o dizia. Os copos deram um salto.
— Não há problema — disse Luz —, eu sento-me lá. Não é preciso que ninguém se mova.
— Vou eu. Tu já tens lugar.
Todos apertaram as barrigas contra a mesa para que eu pudesse passar de novo entre os encostos e a parede.
Sentei-me, por fim. Luz tagarelava com a minha família enquanto eu os observava da outra ponta.
Olhei em redor; não recordava a maioria das pessoas, e as crianças teriam nascido depois de eu ter tido de me ausentar. Junto de mim, um idoso devorava presunto à bruta. Na mesa havia vinho, cerveja e água. Chamei o empregado:
— Traga-me um White Russian.
— Um White Russian?
— Vodca com leite e bastante gelo.
— Eu sei o que é um White Russian.
Procurei os olhos de Luz enquanto me traziam a bebida, mas ela não respondia ao meu apelo.
Chegou o meu White Russian. Dei-lhe um bom gole.
O empregado perguntou-me:
— O que vai querer de segundo?
Eu disse-lhe que nem sequer tinha comido o primeiro, acabava de me sentar. Como não se ia embora, disse-lhe que queria cabrito. O velho riu-se. Tirei-lhe um camarão do prato, molhei-o no White Russian e meti-o na boca sem o descascar.
— Tu és o atrasado — disse-me o idoso.
Peguei noutro dos seus camarões e fiz o mesmo. Desta vez ofereci lho, mas ele não o quis. Comi-o eu e bebi o meu copo de um trago. — Se calhar não gostam de mim por isso, porque a minha mãe me teve já fora do tempo.
— Por isso e pelo que fizeste à tua irmã.
— Cale-se — adverti-o, pondo-lhe o copo vazio à frente da cara. — Outro! — gritei ao empregado. — Num copo maior. Uma caneca, se puder ser. Uma caneca grande.
Trouxe-me o cabrito e uma caneca a transbordar de gelo, leite e vodca.
A verdade é que eu já não tinha muito apetite.
Luz vigiava-me pelo canto do olho. Quando a surpreendia a observar-me, ela disfarçava, por isso atirei-lhe um pedaço de cabrito que caiu junto do copo dela. Todos agiram como se nada se tivesse passado. Atirei outro pedaço que embateu na camisa de Javier. Luz, agora sim, cravou em mim os seus olhos cheios de repulsa enquanto se esmerava a limpar a camisa do anfitrião com um guardanapo.
Então a sala ficou às escuras.
Pela porta da cozinha saiu um grande bolo cheio de luzinhas. A menina foi para o centro da mesa para fazer as honras; o chefe de sala deu lhe uma espada, como se faz nos copos-d’água parolos. Eu levantei-me também. Peguei na minha caneca e dirigi-me para lá. Passei saltando sobre os assentos porque agora toda a gente estava de pé. Luz agarrou-me pela camisa.
— Onde vais? Já chega.
— Vou dar um beijo à minha sobrinha — disse eu, esquivando-me de um puxão.
Pus-me junto da menina, ao lado do bolo, e comecei a dançar e a saudar os convidados, que não podiam deixar de me olhar. Celia tinha a espada na mão. Comecei a incitar as pessoas para que batessem palmas à menina.
— Vamos lá, palmas!
Todos começaram a aplaudir, hesitantes no início. Eu voltei para junto do bolo dando um gole na minha caneca.
A menina perguntou-me:
— O que é essa coisa que estás a beber?
— Uma poção mágica, queres prová-la?
Ela assentiu enquanto os outros batiam palmas, alheios ao conteúdo da nossa conversa. Eu continuava a dançar em redor do bolo, dando pequenos tragos na minha poção.
— De certeza que queres prová-la? — insisti, cerimonioso. Ela sorriu.
Ergui a caneca e entornei-a sobre a cabeça da menina, pintando-lhe o cabelo negro e a sua cara com um tom leitoso. Ela largou a espada, que deslizou com um som estridente sobre os ladrilhos. Olhou-me com os braços separados do corpo, como uma estátua. Acho que não gritou. Não me lembro bem, mas podia jurar que não foi ela quem gritou. Rapidamente encaminhei-me para a saída. Javier impediu-me a passagem, mas atirei-lhe a caneca aos pés, que explodiu, fazendo-o retroceder, e saí da sala em passadas cada vez maiores. Já fora, apercebi-me de que a minha roupa estava manchada de salpicos brancos e as minhas mãos cobertas por uma nata pegajosa que se agarrava à pele. Custava-me separar os dedos, emporcalhados com tanta pureza. Só pensava em sair a correr, por isso corri. Meti-me por terrenos e campos áridos, pontapeando a terra daquele campo estéril até perder os sapatos. Continuei a correr descalço enquanto o coração me martelava o peito. Corri com alegria. Até vomitar.