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Original text "UPRKOS PROLEĆU" written in SR by Ana Marija Grbic,
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Mentor

Dejan Tiago-Stankovic

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Apesar da primavera

Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Ana Marija Grbic

      Sob a luz intensa duma lâmpada de néon da fraca qualidade, Mariana Gruić cuspia tentando limpar a lama das suas coxas. Ainda era jovem e ainda capaz de correr numa flecha até à entrada, nem sequer tinha que andar pelo caminho pavimentado, as sapatilhas gastas que tem dão-se bem com a terra e a poeira. Mariana refletia sobre a vida, ainda ontem pulava elástico, e já hoje o namorado beijou-a de língua e ela sentiu uma língua alheia, quente e áspera, a encher-lhe a boca. A vida vai mudando, dizia a avó de Mariana, a vida vai mudando sem parar, só que vai ficando sempre pior. Mariana Gruić afundou numa profunda reflexão sobre a vida, mais precisamente, concluiu que a língua do seu namoradinho era uma alternativa bem boa quando comparada com as brincadeiras infantis. Um beijo de língua é melhor do que a sensação no peito que já não aguentas mais e cais de joelhos no asfalto, magoas a palmas das mãos, sem saber quem está pior, tu ou tuas amigas. 
      Por já ser mais crescida, Mariana não parava de falar ao telefone, mesmo quando tomava duche, quando a avó contava historinhas da sua juventude, quando a mãe e o pai discutiam, ela andava sempre agarrada ao telefone. Desta vez, quando o seu telefone tocou, Mariana estava dentro da banheira e aí atendeu. Quem ligou foi uma gaja furiosa, chamou-a de puta, disse-lhe: roubaste-me o namorado, desafiou-a para lutar. Mariana, naturalmente, aceitou o desafio, até agradeceu antes de desligar. Foi por três horas inteiras que Mariana Gruić não saiu da banheira, até quis ficar lá dentro sem nunca sair. Primeiro colava as costas ao fundo molhado, depois juntou as pernas e encostou-as contra as paredes frias. O bafo quente da água fazia lembrar o esgoto onde Mariana costumava caçar os sapinhos verdes. Se tivesse continuado a caçar os sapinhos, a pular elástico, se tivesse continuado a decapitar as bonecas, se tivesse pedido à avó que costurasse mais um vestidinho para a sua Barbie, agora não teria que ir lutar. A culpa era sua. A vida vai mudando, mas porquê é que tu tens que mudar com ela, pois, Mariana ficou furiosa ao entender que não havia opção senão ir lutar, de repente sentou-se mal e quase que vomitou o jantar. Nos ouvidos de Mariana Grujić, a noite de abril desenvolveu-se num barulho intenso e ela dormiu ensopada em suor, sem esperanças algumas que no dia seguinte vai voltar a ser jovem para não ter que ir à passadeira, lutar e cuspir. 
      De manhã a avó passava a pano seco umas peras, maduras tal como o recém-formado rabiosque de Mariana, ao meio-dia houve um almoço mal-amanhado da carne péssima que na mesma tarde cresceu numa nuvem turbulenta dentro do estômago de Mariana Gruić que se preparava para o combate. Isto é que é a vida, pensou enquanto calçava com dor e medo os ténis que já lhe apertavam o pé. O que Mariana então não sabia era que esse vai ser o último par de ténis que vão deixar de lhe servir por causa de tamanho. Mas se soubesse que com esse mesmo par de ténis iria terminar a sua infância, que iria deixá-la para trás nesse mesmo dia, se tivesse sabido tudo isso, saltaria imediatamente do décimo-segundo andar do arranha-céu. 
      Na passadeira, o nevoeiro leve e gordurento paira sob o betão quente. A gaja que quer lutar veio acompanhada. São vinte os adolescentes coléricos que pulam nervosos sem sair do sítio à espera que a Mariana se aproxime de passo leve. Mariana Gruić caminha, mas o caminhar não sente. Leva uma pedra na mão e tem os cordões dos ténis bem apertados. Primeiro perde-se no meio das pessoas como se fosse uma deles. A garota que quer luta é a primeira a levar na cara. Mais uma bofetada, e já caiu no chão. No meio das sinapses marianinas ouvia-se um grande latido, ouvia-se muito rosnar, mas ela atirou-se com ainda mais força contra a  multidão que lhe caiu em cima, de punhos e socos, e ela bateu com muita força, com a sua frágil cabeça contra a natureza desfavorável dum bloco de betão. O silêncio que então tocou o corpo de Mariana Gruić tinha o sabor do melhor sorvete de baunilha, intensa porém delicada. A primavera retirou-se, foi-se embora, talvez para as vidas das senhoras finas, penteadas e maquilhadas, onde mais pertence. A passadeira ficou vazia. O que é que se ouvia essa noite da primavera?
      A urina molhou as cuequinhas de Mariana. Ela viu claramente um sapo a encher a boca de ar e sobreviver. Os seus dedos estendidos no chão, ao lado da sua cabeça, ela lembrou-se do seu primeiro orgasmo e apercebe-se que a vida já tinha mudado e que nunca mais nada iria ser melhor. 
      Estava com esperanças que o embate da cabeça fosse tão forte que a faça esquecer-se das manhãs lindas da infância que acabou de perder. Num só instante, os seus pés cresceram por um milímetro, e logo pararam de crescer de vez. Apesar da primavera.

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O final feliz

      Foi a chuva que me acordou. Meteu-se no meu sonho e no início eu não sabia de que mundo vinha. Eu a nadar na infinidade do Pacífico. Sei que era o Pacífico, conheço bem o Oceano Pacífico da televisão. Eu a nadar no turquesa e no cristal. É assim mesmo que dizem nas reportagens, turquesa e cristal. Na anca levava umas fitas que apertavam o fato de banho com umas continhas coloridas penduradas. Recordo-me dele das fotos, o meu primeiro fato de banho, ainda de menina. Enquanto eu fazia o nó, o céu abriu e deixou cair uma cortina de água. As gotas pesadas caíam na minha cabeça e nos meus bra...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
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Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
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Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Ana Marija Grbic

Eu não era, mas agora sou. Sensível a qualquer mudança do tempo.

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Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Marija Pavlović

O Marcador

      Primeiro, Robert fica sozinho no sofá, à esquerda da mancha que há uns meses Sven fez com um marcador vermelho. Ele pergunta como é que estou, se as farmácias e as lojas estão abertas, se tenho tudo o que preciso, o que é que vou fazer se acontecer alguma coisa. Estou bem, estão abertas, tenho tudo, não se vai passar nada. Todos os dias ele pergunta as mesmas coisas, todos os dias eu respondo-lhe o mesmo. Aqui nada acontece depois das cinco da tarde. Queria também acrescentar: O propósito do confinamento é que não se passe nada - mas não o disse, seria imprudente da minha parte. Então Ro...
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O retrato

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Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

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Já chega. Arrumei as malas, o fato na capa, a calçadeira de sapatos e entreguei a chave. Até casa tenho de conduzir durante seis horas, mas o caminho de regresso é mais curto. Abri a janela e, com a cabeça de fora, atravesso cada vez mais rápido a avenida principal da cidade. No fresco da noite e da velocidade, o ar corta-me a face e isso recorda-me a aspereza da esponja desmaquilhante. Tenho uma tez sensível e não suporto com facilidade o tratamento que os apresentadores do noticiário têm de fazer para não se parecerem com uma lua cheia de brilho – é-lhes aplicada uma camada de base em pó, qu...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Alexandru Potcoavă

Os Seres Vivos

Capítulo 1 A mamã morreu sozinha e devagar. A causa da morte, dizem os médicos,  foi uma intoxicação. A mamã intoxicada. Grande estupidez. Não discuti  com os médicos, limitei-me a assinar os papéis e a tratar do enterro. Se havia  algo que a minha mãe conhecia bem era a sua farmácia. Sempre foi exata  com as doses. Não se enganava. À menina, por enquanto, contamos-lhe a  versão oficial, a da intoxicação. Um dia contar-lhe-ei eu mesma que a avó  dela se suicidou.   A menina esteve presente em todos os momentos, depois de lhe dar  a notícia levámo-la ao tanatório. Esteve colada às minhas perna...
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O tempo é um circo

De madrugada, sonhou com um crime cometido sob uma amendoeira e quatro bilhetes de lotaria, todos sem prémio. Era domingo. No sonho, o jovem médico chorou e despertou com as bochechas húmidas, abraçado por uma tristeza púrpura. Come sem apetite, veste-se de luto e espera pelo telefonema que deveria confirmar quem morreu nessa noite. O seu avô nascera perto do início do século XX num mundo demasiado longínquo para que as pessoas tivessem mantido algumas fotografias dele. O pai do seu avô tinha falecido trinta anos antes do jovem médico nascer. Ele vinha de um tempo ainda mais antigo, quando os ...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
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PISK

Dia 28 de novembro de 2020, um mês depois do dia em que o politizado Tribunal Constitucional tornou o aborto ilegal na Polónia. Magda Dropek, uma das organizadoras dos protestos feministas em Cracóvia, escreveu no Facebook: “Durante estes anos em que apoiei as ações nas ruas tive a certeza de uma coisa: que não consigo gritar e clamar, que sou demasiado caótica para falar de maneira rápida e lógica, por isso, sempre me senti bem em transferir o que penso para o papel ou para o ecrã, escrever, comunicar sem usar a voz. Ainda por cima, a minha voz, detesto-a. Nas últimas semanas gritei como nun...
Translated from PL to PT by Katarzyna Ulma Lechner
Written in PL by Aleksandra Lipczak

Um carro da Grécia antiga

Era um dia quente de junho. Só que não se dizia junho, mas antes Thargelion ou Skirophorion. As duas figuras saíram das muralhas de Atenas e, em amena conversa, dirigiram-se, ao longo do rio Ilissus para o campo. Falavam sobretudo de amor. O mais novo dos dois, o jovem, levava consigo uma transcrição do discurso de outra pessoa sobre o amor ser o mal, e ele até acreditava nisso. Na verdade, ele falava apenas desse discurso de outra pessoa. O homem mais velho discordou com ele mentalmente, mas deixou-se levar pela paixão do jovem. E assim pararam debaixo de um grande plátano onde o mais velh...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
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