Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem.
No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar.
Ninguém dirá «72 segundos!»
É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios.
Estou sentada no fundo da piscina e olho para cima, para as pessoas que estão a nadar. Passo as pontas dos dedos por cima das juntas ásperas dos azulejos.
Quando é que soube? Sempre soube e ainda não sei. Na minha memória acontece tudo ao mesmo tempo. Vejo-me a mim própria como uma coleção de polaroides coladas umas ao lado das outras no frigorífico. Os instantes em que foi acionado o obturador condensam toda a história em poucas imagens: ali ela está sentada ao meu colo, ali estou eu a passar pelo hall, ali estou à beira da pista de dança quando uma antiga colega de escola me diz que é lésbica e eu respondo: «Acho que também sou um pouco.»
Sempre fui hábil a reter a respiração.
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A porta de trás está aberta e de vez em quando entra uma brisa no quarto. Estou sentada na cadeira de escritório hipermoderna que o meu pai acabou de comprar, à frente do computador hipermoderno que temos há um ano: uma pequena bola branca de onde sai um caule e um grande ecrã em cima. A secretária é tão larga que dá para eu pôr as pernas cruzadas ao lado, no tampo da mesa que não tem mais nada a não ser uma caixa de fósforos. Os joelhos, escorregadios de suor, deslizam um no outro.
É o ano de 2003.
«Non c'è, non c'è vita per me.»
Acendo os fósforos uns atrás dos outros, olho como a chama de cada um rasteja em direção às pontas dos meus dedos, e aí apago-a.
Estou à espera de uma solução para um problema que não sabia que tinha.
«Senza risposte ai miei perché adesso cosa mi resta di te.»
Ainda não tenho quinze anos e já sou nostálgica, escuto uma canção que não compreendo e vejo-me a mim própria criança sentada no banco de trás do Volkswagen: a cabeça encostada à janela, os candeeiros da rua deixam traços no ar. O baterista e o coro de fundo estão cheios de certezas sobre si próprios.
É assim que passo o verão: ouço os CDs do meu pai e faço um jogo online gratuito onde tenho de rebentar bolas coloridas disparando outras bolas da mesma cor contra elas. Não é um jogo que se possa ganhar ou perder. Simplesmente nunca para. Cada explosão dá-me uma pequena satisfação. Disparo mais uma vez. Acompanho a canção trauteando. Tiro outro fósforo. Abro a janela MSN onde aparecem e desaparecem os nomes dos meus amigos, rodeados por emoticons de rosas e arcos-íris. Non c'e non c'e. A Jitske está online. A Jitske está offline. O Thijmen está online. A Anne está online.
«Beijaste a Lisanne? A sério?»
«Não», escrevo.
«Ela diz que sim.»
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Em poucos minutos um linguado consegue imitar exatamente a cor do ambiente à sua volta. Os olhos sobressaídos, ambos do lado superior do seu corpo achatado, olham à volta, e o cérebro envia sinais para as células portadoras de pigmentos no corpo que, conforme a informação que recebem, se enchem com pigmento ou, pelo contrário, se deixam esvaziar. Enquanto não se mexe, é quase impossível distinguir a olho nu um linguado deitado no fundo do mar. Só é possível vê-lo quando começa a mexer-se.
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Escolhemos uma família, construímos uma casa e damos uma piscina no jardim à irmã mais velha. Quando ela desliza para dentro da piscina, tocando na água com as suas mamas de Barbie num top de biquíni pequenino, a nadar de bruços, pomos o jogo em pausa e tiramos a escadinha. Olho para a boneca com as mãos ao ar, grandes pontos de exclamação por cima da cabeça, furiosa, angustiada, que em breve ficará finalmente sossegada.
The Sims é uma abreviatura de The Simulated. Os fingidos, os homens fabricados. Não são verdadeiros. Uma geração inteira cresceu torturando e assassinando os alter-egos. Os métodos mais inventivos e mais utilizados são discutidos em fóruns. Zangamo-nos, incendiamos a casa, ficamos com vinte e três cães e fechamos o pai no quarto, como um exercício para a vida adulta. Que está a chegar. Estamos a tornar-nos seres humanos. Ou fingimos, com extrema convicção.
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Um papelinho amachucado no tapete, à frente da porta: já não somos amigas. As raparigas falam sobre o que as outras raparigas disseram. Já na escola primária andávamos de casa em casa, púnhamos papelinhos na caixa de correio dizendo quem achava quem estúpida. Às vezes somos só espetadoras, outras vezes somos nós que escrevemos essas palavras falsas. A amizade é um colar que se pode pôr em certas manhãs e noutros dias se pode deixar no armário.
A Anne diz: «Perguntei-lhe quantas pessoas ela tinha beijado e ela disse três: o Jordy, o Bas e tu.»
Ou isso talvez aconteça mais tarde. Talvez eu esteja simplesmente sentada à frente do computador, a música mole de elevador dos Sims a sair dos altifalantes. Decoro uma casa para o Tony, que usa um fio de ouro e que é tímido. Ponho-lhe um flipper na cozinha.
O meu irmão chega a casa. O saco de futebol dele cheira a relva cortada, desodorizante de adolescente e suor velho. Ele põe-no ao meu lado.
– Os rapazes da equipa dizem que és lésbica.
Franzo as sobrancelhas e olho para ele.
– Que treta é essa agora? – digo.
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Um linguado quando nasce é como todos os outros peixes: um tronco oval com duas barbatanas e uma cauda, a boca à frente, um olho de cada lado da cabeça. Quando entra na puberdade, os olhos mudam de posição. Enquanto os ossos deslizam para o tornar mais achatado, o olho esquerdo desloca-se para o lado direito. Em poucos dias a pele muda de cor: o lado inferior fica branco, o lado superior cor de areia, granulado, para se integrar perfeitamente no ambiente. Fica deitado no fundo do mar, irreconhecível na areia. Os olhos são duas pedrinhas pretas que veem agora tudo de forma diferente.
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Ponho os fósforos numa fila, as cabeças pretas queimadas ora num sentido ora noutro. Os meus pés balançam no tampo da mesa, tamborilo com os dedos na madeira, para não ter de bater no teclado.
«O que é que eu devia ter feito então?»
Podias ter franzido as sobrancelhas. Podias ter invocado o teu direito à privacidade. Podias ter inventado outra pessoa. Podias ter fechado o chat e dizer que a internet tinha bloqueado. Os teus pais podiam ter entrado. Podias ter feito o trabalho de casa. Podias ter-te recusado a responder. Podias ter dito “dois”. Podias ter violentado essa parte de ti, podias tê-la calado, podias ter pregado a tua boca à martelada. Com um murro. Não. Podias ter dito não, isto não está a acontecer mesmo. Não, podias ter dito a ti própria, não existes. Podias ter apertado os maxilares e ter sorrido.
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A BBC imitou a decoração de uma sala de estar num aquário marinho: ladrilhos pretos e brancos, papel de parede às riscas, uma chaise longue às pintinhas. É um desafio para o choco: são mestres em camuflagem, não só mudam de cor mas também de forma. Ele incha as ventosas ou barbatanas quando o ambiente o exige e fica parecido com um ramo de algas, um pedaço de coral, um fundo de areia ou uma rocha com anémonas.
O choco deita-se, transforma-se em preto e branco e experimenta vários padrões: um tapete zebra ou um retângulo branco nas costas. Continua a sua pesquisa e vê que se integra com mais facilidade na chaise longue. O seu lado superior transforma-se num padrão com flores.
Este exercício não é inocente. O choco adapta-se para poder atacar. Invisível, desliza sobre o fundo do mar e sopra na areia. Os pequenos animais que se assustam são capturados com um dos seus tentáculos rápidos. Desaparecem na sua boca bicuda.
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Quando atravesso o grande hall, com a minha mochila Kipling azul cheia pendurada ao ombro, elas aproximam-se de mim uma atrás da outra: se é verdade, se eu realmente, que ouviram dizer, se eu talvez – e eu paro-as logo. Conto-lhes o que aconteceu: como ela começou a beijar-me, assim do nada, como até tentou masturbar-me, que eu não estava à espera de nada daquilo, que não tinha contado nada a ninguém porque não queria que ela fosse molestada mas que agora tinha de pôr os pontos nos is. A única fufa nesta escola era ela. Eu nunca a tinha provocado.
Não é que eu seja popular, mas tenho mais amigas do que a Lisanne e antes do intervalo para o almoço já toda a gente sabe da história. Tiro um Kit Kat Chunky da máquina, atiro as minhas sanduíches para o lixo e conto mais uma vez a história toda. Enquanto o meu público se mostrar interessado, represento o monólogo.
«Isto não é para ser grosseira,» digo. «Acho que não tem problema nenhum uma pessoa ser lésbica e também não me importo que ela tenha tentado meter-se comigo. Mas ela depois espalha a história como se tivéssemos querido as duas e simplesmente não é verdade.»
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A vergonha é maior e mais sorrateira do que tinha imaginado. Não se manifesta em olhos semicerrados e bochechas coradas ou gaguejos, mas em frases irrefletidas – «desculpa se tiveste a sensação de que» – e na teia de histórias que ela tece. Sinto vergonha pelo que aconteceu com a Lisanne, sinto vergonha do que fiz à Lisanne, sinto vergonha por ela me ter deixado fazer isso e sinto vergonha pelo que me tornei e pelo que fiz da Lisanne.
Meio ano mais tarde ela aparece na escola com pensos rápidos nos pulsos. Sussurros, o frémito das nucas nas gabardinas que se viram de repente e depois o riso, quando alguém a detém no corredor, lhe arranca o penso e toda a gente vê que não há ali nada. Pele branca intacta.
E eu ainda me lembro como era suave a sua pele sobre a minha barriga.
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Todas as recordações se situam no grande hall do edifício da minha escola secundária, que já não existe. Sonho com esse hall. Os azulejos verde-amarelados nas paredes. Não preciso de fazer um teste, não há matéria para aprender. Não pertenço aqui. O que faço aqui? Olho para o placard e não sei aonde tenho de ir. O hall é de pedra, cada ruído deixa um eco. Os azulejos, os cabides, o cruzamento onde se juntam quatro corredores, o que quer dizer que pode vir um espetador de cada direção. Alguém que me olhe ao passar por mim e diga: «ela foi a primeira rapariga que beijaste e fizeste dela uma mentirosa».
Olho para trás no tempo e vejo-me desintegrar-me em gotas finas. Sobem e começam a rodar umas à volta das outras e eu movimento-me através da minha memória, em cima do linóleo verde da sala de ginástica onde estão desenhados os padrões dos campos de futebol, de basquetebol, de voleibol, de badminton e de hóquei, mas onde ficam invisíveis as linhas que as crianças devem respeitar. Sinto arder as esfoladelas que fazemos a brincar à apanhada e começo a girar com tanta força que me torno magnética, tal como a Terra, atraio toda a história para mim e o mundo puxa de volta, isto não é nada contigo, isto está fora de ti, mas tudo vai desaparecer na minha boca que repete a mesma frase sem fim: «Acho que não há problema nenhum em ser-se lésbica.» Levanto os braços, o mar divide-se em dois e olho para o fundo: lá está o linguado deitado, ofegante.