View Colofon
Original text "Siempre hemos vivido en este pueblo" written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez,
Other translations
Mentor

Manuel de Freitas

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Sempre vivemos nesta aldeia

Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez

Mudámos de pele. Digo-o a mim mesma em frente ao espelho de água que o tanque nos proporciona. Já não existem vacas na aldeia, pelo que este bebedouro é nosso, como quase tudo o que nos rodeia. Nosso e de ninguém. Património das que resistem e residem. A minha filha, que tem restos de lama e folhas secas no cabelo, agarra-se ao meu corpo como um animalzinho. Há muito tempo que não usamos o carrinho de bebé porque os caminhos de pedra estragam-no e os meus músculos habituaram-se a ela, ao seu peso e aos seus contornos, adquirindo contornos novos, atléticos, impensáveis. Já não sou uma mulher magra. Sou um andaime.

É Sábado de manhã e acabamos de vasculhar as beiras da estrada da região, à procura de ervas medicinais a que chamo ervas bruxas, para que a miúda conheça a sua linhagem, de onde vem. Olha, aquele arbusto nauseabundo é uma arruda; em pequenas doses, ajuda a tratar da síndrome pré-menstrual e, em doses elevadas, é um potente abortivo, um dos mais usados na época em que nos puxavam fogo por conspirarmos contra os nossos úteros. A minha filha tem um ano e meio e os especialistas concordam que ainda não domina a linguagem humana, mas já aprendeu o que se refere às plantas. Identifica, a uma distância prodigiosa, o cor-de-laranja fosforescente das calêndulas, distingue o roxo das malvas do roxo da chicória, e hoje saiu dos meus braços rumo a um arbusto semioculto entre as sarças, irrelevante no meio dessa proliferação do idêntico com que a natureza nos atordoa e, ao mesmo tempo, realçado por um fluido invisível que também é projetado pelos precipícios. Parei-a mesmo a tempo de evitar que as suas mãozinhas se impregnassem de estramónio. Isso não, pequenita. As daturas não dão uma boa viagem. Provocam amnésia anterógrada. A burundanga é uma datura. Era o que, antigamente, as bruxas utilizavam para voar, aplicando uns unguentos afrodisíacos, com os cabos das suas vassouras, e agora utilizam-na os homens para violar-nos.

Olhou-me com atenção, mas não se afastava do perigo, pelo que a suspendi no ar com os meus novos músculos de atleta e tomámos o caminho de volta. É Sábado de manhã e, há uns meses, tê-lo-íamos passado a esquadrinhar as prateleiras de uma Tiger: borrachas em forma de coelho, coelhos de plástico, arbustos de plástico dentro de vasos em forma de coelho, sem qualquer coelho à vista. Agora, surgem ao ritmo dos nossos passos; saúdam-nos em ziguezague e devolvemos-lhe a saudação. “Ena.” É essa a primeira palavra do nosso idioma comum, e é o que dizemos aos animais selvagens: Ena, já não somos consumidoras nem produtos. Somos trotadoras de caminhos de terra, como vós.

Se digo que mudámos de pele é porque, na verdade, nos vejo diferentes. Temos o brilho dos talheres usados, o valor da prata que não é de adorno. Quero dizer que apenas tomamos banho uma ou duas vezes por mês, neste tanque de água estéril como o gelo; que usamos roupa funcional, de esqui, e que ostentamos uma beleza inquestionável porque já não há ninguém para julgá-la. Quando o cabelo fica sujo, aplicamos-lhe farinha de trigo, que absorve a gordura, e, a seguir, sopramos com muita força até que o pó se volatiza à nossa volta e parecemos espíritos. Desde que saímos da cidade, tudo quanto fazemos é um jogo. O jogo de varrer as folhas secas do jardim. O jogo de regar as plantas da estufa. O jogo de arrancarmos as carraças inchadas dos tornozelos. Somos o que seríamos todos se não houvesse sempre alguém a olhar, mas há sempre alguém, sempre. A semana passada recebemos a visita de uma mulher que dizia ser técnica da câmara municipal a que pertencemos — reparei que, ultimamente, os assistentes sociais evitam identificar-se como tal, ao estilo da polícia secreta — e ofereceu-nos um par de garrafas de água mineral e uns formulários para inscrever a miúda na creche municipal.

— Se o transporte for um problema, o autocarro escolar poderia vir buscar-vos — disse-me, e deu-me vontade de rir, porque se o transporte não tivesse sido um problema, nem sequer estaríamos a morar numa aldeia fantasma. O último vizinho que tivemos, um senhor de 87 anos que vivia com uma setter a que chamava depreciativamente Puta, mudou-se para a cidade porque lhe negaram a renovação da carta de condução e aqui, sem carro, só dispões das tuas próprias pernas. Não nos importou porque era um velho muito desagradável que se queixava de as nossas galinhas andarem pelas casas que os seus familiares abandonaram há décadas, mas a injustiça é a injustiça, inclusivamente quando é cruel para com aqueles que não amamos.

— Não tenho intenção de escolarizar a miúda até que seja obrigatório — disse eu à assistente social que se dizia técnica, e esta começou a assentir com uma ênfase que, em vez de aceitar as minhas palavras, parecia querer afugentá-las.

— E o que é que me dizes do recenseamento? Se se inscrevessem como residentes, poderíamos ativar os abastecimentos. Teriam luz e água corrente. É o mínimo, não? Só precisaria de um Cartão de Cidadão. Pensa na miúda…

A mulher dirigia-se-nos a partir de uma esquina do alpendre que foi tomada pela cicuta e ocorreu-me que, com o seu casaco fino e o seu palavreado assistencialista, seria uma daquelas pessoas facilmente confundíveis com a salsa. Tive uma ideia mas contive-me. Inspirei e contive-me. Fiz o mesmo que digo à minha filha que faça quando lhe dói alguma coisa: fixei o olhar na silhueta distante da cordilheira e esperei até que um abutre passasse pelo céu. Nessa altura, estaríamos novamente sozinhas. Livres e não identificadas. Ilocalizáveis.

Ontem, vimos um lagarto da mesma cor das folhas. Atravessava o caminho de lama com um alvo nas costas, mas dissolvia-se no meio do idêntico assim que alcançava as plantações. Fez-me refletir acerca de algo que há muito tempo intuía. Já não sou uma mulher. Sou um animal que se camufla porque a sua pele é o oposto da terra. Com a lama que ela trouxe do monte, desenho um trevo de quatro folhas na testa da miúda e despedimo-nos do nosso reflexo, porque a posição do sol nas alturas, próximo do campanário, nos apressa e falta fazer muitas coisas. Temos de alimentar as galinhas e cortar madeira para a lareira e ferver água e aquecer um puré de hortaliças duras como cornos. A cada entardecer, a cada novo lume, temo que as chamas se avivem demasiado e que desapareça o que construímos durante o dia, mas também sei que este medo é ancestral e irremediável, a consciência subtil da carne que se lembra de uma carne anterior que se queimou na fogueira, e também digo a mim mesma que a nossa casa é apenas um ponto numa rede extensa que nos liga ao território, com outras mulheres e outras miúdas que resistem a dar o seu nome a qualquer censo e que abraçam a intempérie para afugentar a ameaça, a chantagem de um despejo. A cidade expulsou-nos, mas o campo refugia-nos porque é a sua inércia que desenha os limites entre o que está dentro e o que está fora. Continuaremos a mudar de pele para mimetizar novos campos, mas, de uma forma algo inexplicável, sinto que sempre vivemos e sempre viveremos nesta aldeia.

More by Miguel Martins

Notas sobre a vida de Frances Donnel

Prólogo Em 1945, Frances Donnell, escritora e conhecida criadora de aves, nasceu nos Estados Unidos. Em 1983, fingiu morrer de lúpus, doença que a afligia desde a sua juventude. Meses depois da sua tentativa, descobriu-se que tinha sido tudo um boato. Após uma pequena polémica, a que chegaremos no momento oportuno, Frances permaneceu no anonimato durante várias décadas. Já no século XXI, chegou a Espanha com a dureza da doença às costas, pois aquela não tinha deixado de crescer dentro de si. Costumava dizer que tinha abandonado o seu país no momento em que se tornara demasiado velha para sent...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Mudar de ideias

A Maixa recomenda-me que pronuncie todas as sílabas, sem me armar em londrina, que não me alongue muito no enquadramento teórico, que experimente o equipamento informático antes de começar a defesa, que seja humilde, que tome nota das perguntas e sugestões do júri e que os convide para almoçar num restaurante de menu fixo. A June opina que isso do menu é muito foleiro e sugere-me um refeitório na faculdade, uma citação de Weber, meio Lexatin ao pequeno-almoço e dar-me boleia até Gasteiz. Aceito a bibliografia e o transporte. Saímos de Bilbau com a minha mãe, a minha prima e o meu namorado co...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez

Elogio do Furacão

Apreciei sempre a violência do quotidiano: por exemplo, a de um copo que se parte na escuridão. Às vezes, pergunto-me se essa memória é realmente minha. Revivo a cena com uma alegria difícil de conter: o objeto que cai e se desintegra e se torna estrépito surdo e logo tumulto de vozes a meio da noite. A minha mãe carrega no interruptor para iluminar os vidros espalhados. A sua mão aberta no ar, por cima de mim. O som da bofetada que não se parece, de modo algum, com o som do vidro contra o chão e a sensação de compreender que tudo faz parte da cerimónia. A violência que principia com um copo e...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano

Todos os bichos do campo

Como era habitual, naquela manhã acordou com fome. Os grasnidos dos patos que sobrevoavam o telhado ressoaram nas paredes do dormitório e a miúda sentou-se na cama. Os patos tinham chegado a casa da sua avó vindos de longe, talvez de outro continente, agitando as suas asas. De um dia para o outro, tinha deixado de ir à escola e mandaram-na para ali, com a sua avó, que vivia junto a um lago, a quilómetros da aldeia mais próxima. Ela não interessava a ninguém. Os seus pais procuravam intimidade, ou estavam a trabalhar, lá na cidade, não sabia bem. Aquilo de que não duvidava era dos tremores do s...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Pássaros que cantam o futuro

Parece uma mistura impossível de coruja, morcego, pinguim e texugo; tem a pelagem azul, os olhos grandes e vermelhos, o bico amarelo; não tem mãos mas sim duas asas pequenas que se acionam ao ligá-lo. Feliz aniversário, diz ela. Noa pensa que a compra valeu a pena, ainda que tenha ultrapassado um pouco o seu orçamento. Precisou de dez mesadas para reunir o dinheiro mas, agora, ao vê-lo a ele tão entusiasmado, alegra-se por ter renunciado ao cinema, ao parque de diversões e, inclusivamente, à pista de bólingue das Sextas-feiras com as suas amigas. Daniel segura o boneco como se fosse algo v...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano
More in PT

Amanhã

Deitada de costas, no conforto macio dos lençóis, com os olhos fixos num ponto invisível do tecto do quarto, Carlota tentava a custos regular a respiração que se mantinha alterada desde que o sonho ansioso que estava a ter a despertou. Já nem se lembrava do que realmente estava a sonhar, só se recordava da sensação desesperada que a obrigou a acordar. E, desde esse despertar abrupto a meio da noite, que ela tentava, de todas as maneiras que conhecia e se lembrava, baixar o ritmo cardíaco, até aquele momento sem sucesso. Desistiu, empurrou a coberta para trás e levantou-se da cama, sem antes o...
Written in PT by Patrícia Patriarca

O nosso pai

O corpo inteiro do meu meio-irmão tomou a forma da sua indiferença. As suas pernas, ligeiramente arqueadas e enfiadas numas calças de ganga desbotadas, acabam em pés que quase não levanta do chão enquanto caminha, pelo que a sua presença é constantemente acompanhada por um som de arrasto dos pés. A parte superior do seu corpo é como um bolo deformado colocado à volta da cintura. Tem ombros curvados para a frente e braços esguios que só levanta quando é mesmo necessário. Mas aquilo que primeiro me salta à vista quando ele surge por trás da porta de casa são as suas sobrancelhas e os cantos da b...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Lotte Lentes

Sónia levanta a mão

Por estes lados, as pessoas são muito desconfiadas. Mas não se sabe se noutros sítios a iriam receber de braços abertos. As pessoas do lado dele. Os do outro grupo. Não conhece, no círculo dela, casais das gerações anteriores, em que os dois sejam amigos, e não inimigos, mesmo que fiquem juntos até à velhice. Algures no mundo talvez existam os que ainda ficam amigos a vida toda e para além dela, mas são poucos, extremamente sortudos e bem escondidos aos olhos dos outros, de tal forma, que, olhando à tua volta, tu, jovem, possas estar quase convencido de que quem está ao teu lado chegará a dest...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Lavinia Braniște

O metro

Na segunda-feira de manhã ouvi o metro chegar à estação no momento em que introduzia o bilhete na máquina e, embora ainda não estivesse atrasado e mesmo que estivesse, não havia problema, embora estivesse abraçado pelo desejo absoluto de apanhar aquele metro, um desejo não tanto como uma vontade, mas como um anseio bizarro de vingança, lançou-se pelas escadas abaixo. Aconteceu algo muito curioso. Assim como se diz que quando se morre, toda a vida te passa pela frente dos olhos, naqueles breves segundos de que precisou T. para saltar os degraus, toda a sua vida lhe passou pela mente a uma veloc...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Cătălin Pavel

Para não Te Ver

Já sabes que levei os miúdos, as roupas, as coisas do banho, a comida  biológica dividida em pequenas porções dentro de tupperwares de cores  berrantes como as da Benetton, levei também os livros deles, porque de  noite é só pela leitura que consigo convocar o sono do Rogério, e não raras  vezes ele acorda horas depois com um pesadelo a esganar-lhe a maçã-de adão, e eu abraço-o, como te abraçava, Rita, quando fazíamos um ninho  tão perfeito que quem nos visse de cima poderia facilmente confundir-nos  com um daqueles símbolos chineses a preto-e-branco onde se vêem  explicados a imortalidade e o...
Written in PT by Valério Romão

Residence

Apartamento 11  O MENINO  Aquele menino, olhai bem para ele.  Todos os verões, aquele menino tem mais um ano.  Todos os verões, o castanho dos seus cabelos é aclarado pelo sol num  vermelho ténue, de reflexos claros. Todos os verões, de manhã, enche os  pneus da sua BMX e pedala dentro da Residence, ao longo do muro de  pedra atrás do qual se esconde e espia os da sua idade escoicear uma bola no  campo de terra batida. Gritam palavrões de todo o tipo. Palavrões que o menino nunca disse.  A Residence é composta por dois pequenos edifícios de três pisos,  idênticos. Um o reflexo do outro. A div...
Translated from IT to PT by Ana Cristino
Written in IT by Maurizio Amendola