View Colofon
Original text "Cambiar de idea" written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez,
Other translations
Proofread

Paulo Capinha

Mentor

Manuel de Freitas

Published in edition #2 2019-2023

Mudar de ideias

Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez

A Maixa recomenda-me que pronuncie todas as sílabas, sem me armar em londrina, que não me alongue muito no enquadramento teórico, que experimente o equipamento informático antes de começar a defesa, que seja humilde, que tome nota das perguntas e sugestões do júri e que os convide para almoçar num restaurante de menu fixo. A June opina que isso do menu é muito foleiro e sugere-me um refeitório na faculdade, uma citação de Weber, meio Lexatin ao pequeno-almoço e dar-me boleia até Gasteiz. Aceito a bibliografia e o transporte.

Saímos de Bilbau com a minha mãe, a minha prima e o meu namorado comprimidos no banco de trás, com a luz do depósito de reserva a piscar, histeria coletiva e conversas que se sobrepõem. Não é de estranhar que passemos ao largo da bomba de gasolina da A-8. Durante uns quilómetros muito tensos, consideramos a possibilidade de ficarmos parados na auto-estrada e descubro que tanto me faz. Tanto me faz chegar ou não chegar, doutorar-me ou não. A minha indiferença nota-se a olho nu. Eu, que subo para uns saltos altos até para ir a bares com serradura no chão, sou a mais malvestida da aula magna, tenho o cabelo sujo e restos de remelas nos canais lacrimais.

Nada disto importa porque já passou.

A minha indiferença é fruto de um paradoxo temporal: estou a viver uma recordação.

Há somente um instante em que o guião apresenta brechas, as famosas faultlines de Alan Sinfield — referenciado na bibliografia geral, página 367 —, e é quando toma a palavra o catedrático, o único senhor da mesa, e aquele que lhe preside. Não compreende o capítulo em que analiso o impacto que teve o escândalo de Abu Ghraib na representação das mulheres violentas, ainda que as minhas únicas contribuições originais estejam reunidas nessa secção. Imediatamente a seguir ao 11 de Setembro, o conservadorismo norte-americano aproveitou a confusão para investir contra o feminismo da igualdade. A América tinha sido atacada porque os seus inimigos a percecionavam como fraca, porque os homens já não se comportavam como homens. As séries que então foram produzidas refletem o regresso dos papéis de género clássicos, salvar a chefe da claque, salvar o mundo, com heróis de inspiração western como Jack Bauer e mulheres indefesas e estúpidas. Mas, à medida que nos afastamos do ground zero, a tendência inverte-se. Tem início um período marcado pelas personagens femininas, mulheres com catana, com distintivos do FBI e da CIA, que quebram os códigos binários, combinando o melhor de ambos os mundos. Podem cortar cabeças e ser mães, podem ser andróginas e, simultaneamente, sem curto-circuitos, reivindicar a tão caluniada intuição feminina.

Conto ao presidente que as heroínas surgem muito tarde nos géneros de ação porque o discurso essencialista promulgou sempre a passividade e a doçura que nos são próprias. Até à agente Ripley, as únicas mulheres violentas que aparecem no ecrã são descendentes de Medeia, monstros do cinema de terror. E há um sector do feminismo que se baseia nestes preconceitos. É o feminismo que fala sempre de feminizar as instituições, como se incorporar mulheres na política ou no exército tivesse, por si só, um efeito civilizador, como se todas elas fossem santas e a sua santidade contagiosa. É o feminismo que me irrita, e que sofreu um duro golpe quando se soube das torturas de Abu Ghraib. A sociedade norte-americana não entrou em choque porque os seus militares torturaram, mas sim porque também as soldadas o fizeram. As imagens que se tornaram icónicas são aquelas em que Sabina Harman e Lyndee England posam sorridentes junto a montes de iraquianos nus. A única coisa positiva que saiu daquele horror foi ter posto em causa os valores inatos de cada sexo, senhor presidente, dando origem a personagens híbridos como os que analiso ao longo do último capítulo.

O senhor presidente não quer entrar em polémicas, diz-me, mas também não se abstém de dar a sua opinião.

— Sempre que uma dessas filósofas que você menciona me diz que não existem diferenças entre os sexos sinto vontade de fazer uma coleta para que estudem medicina ou biologia, ponto final.

O silêncio que precede a minha resposta cheira a sangue, à possibilidade de haver sangue. Mas deixo que a bala me silve junto ao ouvido e encaixo o comentário com a simpatia de uma aspirante a Miss.

O júri regressa das deliberações enquanto aqui, no presente a partir do qual escrevo estas linhas, aguardo que seja lida a sentença do julgamento da violação das festas de São Firmino. No presente a partir do qual escrevo, estou muito mais nervosa do que dentro do texto, onde desenho florinhas naquele que será o meu último caderno de estudante e não reparo que toda a gente está à espera que eu faça alguma coisa. A Maixa pigarreia até que consegue chamar-me a atenção. Tem os olhos desorbitados e gesticula como um DJ antes da típica descarga do techno-house. Por fim, compreendo. Aquilo é como um julgamento e, se não me puser de pé, não leem a minha sentença. Acato o protocolo e finjo que não me surpreende que corra tudo conforme esperado, que me felicitem e assinem as minhas atas e me deem as boas-vindas àquele novo clube e àquele novo tratamento de que só a morte me separará. Dra. De la Cruz para a vida.

E agora?

A Maixa envia-me o link de um estudo sobre a incidência de doenças mentais entre doutorandos e investigadores. A June ajuda-me com a papelada para solicitar o subsídio de desemprego. A Maixa recomenda-me que divida a minha dissertação em quatro ou cinco artigos e que os publique em revistas especializadas, ao passo que a June se inclina mais para o formato monográfico. Ambas me alertam para a crise existencial que me aguarda e eu digo-lhes que estou a salvo porque tenho um plano, um plano substitutivo. Se dentada de cão se cura com pelo do mesmo cão, o vazio deixado por uma tese de doutoramento preenche-se com um romance, ou com algo parecido com um romance, algo próximo do género das memórias, talvez, ainda que prefira pensar em confissões, como as confissões dos criminosos que circulavam pela Inglaterra do século XVIII, estão a ver? Eram panfletos editados pela igreja com um propósito educativo-dissuasor, nos quais eram narradas as carreiras criminosas dos condenados à morte. Alguns teóricos defendem que estes impulsionaram o auge do romance porque os leitores queriam sempre mais e não havia réus para tanta procura, tendo aparecido os escritores profissionais para cobri-la. Como veem, a confissão está na origem do nosso ofício. E talvez seja por ter sido criada num ambiente laico mas, a mim, não me parece que a culpa seja uma coisa assim tão horrível. A culpa é o material com o qual se fabrica a justiça poética, o castigo para as penas que prescrevem ou não se tipificam. Seja como for, a ideia é esta: narrar a minha trajetória, os meus trinta anos de delitos menores, para demonstrar que quase tudo o que me envergonha tem que ver com um defeito tão paradoxal como o da misoginia.

A June deixou de ouvir-me há um bocado. A Maixa avalia o meu projeto com um suspiro. Pede exemplos das minhas afrontas contra as mulheres e eu falo-lhe de uma Erasmus que arrastei para as casas de banho de um bar, com a desculpa de convidá-la para droga e de como, uma vez lá dentro, lhe pedi que se enrolasse comigo em troca do convite; de como abandonei a Milena num contexto que me pareceu perigoso, enquanto ela me suplicava que não a deixasse sozinha; da namorada do Manu, do muito que tivera de assediá-la para que tivesse deixado de responder às minhas mensagens… Ela interrompe-me antes que eu termine a lista.

Não é igual seres tu a fazê-lo ou um homem.

Não digo que seja igual. Digo que é igualmente reprovável.

Discordo.

Estamos em princípios de Outubro do ano de 2017, o que significa que falta muito pouco para que rebente o caso Harvey Weinstein e que o hashtag #MeToo se apodere das nossas paredes e dos nossos timelines. O tweet que desencadeia a reação em cadeia é publicado no dia 15 e eu descubro o fenómeno a 19, quando começam a surgir as primeiras vozes críticas no seio do feminismo, as que lamentam, por exemplo, que a exposição recaia sempre sobre as vítimas e que exigem que, para variar, sejam os agressores a dar um passo em frente. Eu apoiarei esta iniciativa e fá-lo-ei dando o exemplo, reconhecendo que sim, que eu também assediei, mas não me ocorrerá colocar-me na posição de quem denuncia, não terei ainda ultrapassado a linha fantasma que, no liceu, me separava das carteiras das raparigas nem terei compreendido o significado da violência sexual contra as mulheres, a sua função disciplinadora. Caber-me-á contar às minhas netas que participei no #MeToo a partir do travestismo. Sinto-me mais cómoda com a confissão do que com o testemunho, como culpada do que como vítima, porque continuo a apostar no reverso ganhador das moedas: entre pátria ou morte, pátria; entre ordem e caos, já se sabe.

— O que é que tu achas, June?

A June sim, deixar-se-á incluir no processo, enumerando no seu mural de Facebook uma coleção de injustiças de que nunca se havia permitido falar, mas que, uma vez compiladas e transcritas, virão à tona como vermelhidões quentes ao tato, como uma armadura defensiva. No exemplo que Freud usava para ilustrar o trauma, um homem sobrevivia a uma colisão de comboio, caminhava, aparentemente ileso, até casa e, uma vez a salvo, manifestava os primeiros sintomas da sua claudicação. A June está quase a chegar a casa, quase a somatizar um corpo cheio de cicatrizes e a exibi-las com o mesmo orgulho desafiante com que Zuriñe me mostrou as suas. Mas ainda não estamos nesse ponto; continua a ser a amiga que gosta de ti com relutância porque não suporta ver-se ao espelho.

— Se vais escrever um romance acerca da culpa, mais vale seres culpada de alguma coisa maior.

More by Miguel Martins

Notas sobre a vida de Frances Donnel

Prólogo Em 1945, Frances Donnell, escritora e conhecida criadora de aves, nasceu nos Estados Unidos. Em 1983, fingiu morrer de lúpus, doença que a afligia desde a sua juventude. Meses depois da sua tentativa, descobriu-se que tinha sido tudo um boato. Após uma pequena polémica, a que chegaremos no momento oportuno, Frances permaneceu no anonimato durante várias décadas. Já no século XXI, chegou a Espanha com a dureza da doença às costas, pois aquela não tinha deixado de crescer dentro de si. Costumava dizer que tinha abandonado o seu país no momento em que se tornara demasiado velha para sent...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Elogio do Furacão

Apreciei sempre a violência do quotidiano: por exemplo, a de um copo que se parte na escuridão. Às vezes, pergunto-me se essa memória é realmente minha. Revivo a cena com uma alegria difícil de conter: o objeto que cai e se desintegra e se torna estrépito surdo e logo tumulto de vozes a meio da noite. A minha mãe carrega no interruptor para iluminar os vidros espalhados. A sua mão aberta no ar, por cima de mim. O som da bofetada que não se parece, de modo algum, com o som do vidro contra o chão e a sensação de compreender que tudo faz parte da cerimónia. A violência que principia com um copo e...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano

Todos os bichos do campo

Como era habitual, naquela manhã acordou com fome. Os grasnidos dos patos que sobrevoavam o telhado ressoaram nas paredes do dormitório e a miúda sentou-se na cama. Os patos tinham chegado a casa da sua avó vindos de longe, talvez de outro continente, agitando as suas asas. De um dia para o outro, tinha deixado de ir à escola e mandaram-na para ali, com a sua avó, que vivia junto a um lago, a quilómetros da aldeia mais próxima. Ela não interessava a ninguém. Os seus pais procuravam intimidade, ou estavam a trabalhar, lá na cidade, não sabia bem. Aquilo de que não duvidava era dos tremores do s...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Sempre vivemos nesta aldeia

Mudámos de pele. Digo-o a mim mesma em frente ao espelho de água que o tanque nos proporciona. Já não existem vacas na aldeia, pelo que este bebedouro é nosso, como quase tudo o que nos rodeia. Nosso e de ninguém. Património das que resistem e residem. A minha filha, que tem restos de lama e folhas secas no cabelo, agarra-se ao meu corpo como um animalzinho. Há muito tempo que não usamos o carrinho de bebé porque os caminhos de pedra estragam-no e os meus músculos habituaram-se a ela, ao seu peso e aos seus contornos, adquirindo contornos novos, atléticos, impensáveis. Já não sou uma mulher ma...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez

Pássaros que cantam o futuro

Parece uma mistura impossível de coruja, morcego, pinguim e texugo; tem a pelagem azul, os olhos grandes e vermelhos, o bico amarelo; não tem mãos mas sim duas asas pequenas que se acionam ao ligá-lo. Feliz aniversário, diz ela. Noa pensa que a compra valeu a pena, ainda que tenha ultrapassado um pouco o seu orçamento. Precisou de dez mesadas para reunir o dinheiro mas, agora, ao vê-lo a ele tão entusiasmado, alegra-se por ter renunciado ao cinema, ao parque de diversões e, inclusivamente, à pista de bólingue das Sextas-feiras com as suas amigas. Daniel segura o boneco como se fosse algo v...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano
More in PT

Alguns minutos à deriva

O dia começou mais cedo do que tinha pensado. Tinha posto o alarme para tocar às 5.56 por várias razões. Queria ter tempo para a meditação matinal e também, para poder aguardar trinta minutos que o comprimido que melhora as funções da tiroide fizesse efeito antes do café, e depois, começar uma série de exercícios que combinam o queimar das gorduras com a tonificação dos músculos, usando somente o próprio peso, sem esquecer, entretanto, de ligar o esquentador elétrico, porque o aquecimento da água leva umas quatro horas, o que me dá tempo de sobra para acabar também a sequência de ioga para ab...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Cristina Vremes

Sobre os corcéis e os demónios

Recordo o dia de ontem como se fosse ontem. Em Bruxelas, apanhei um comboio – aliás, dois, porque tive de mudar para a correspondência – para Haia só para ver uma única pintura.     O demónio obcecou-me com um desejo obsessivo, pelo que simplesmente tive de ir.      Mas a viagem estava longe de ser o que eu imaginava, o que confirmei quase imediatamente depois de sair do hotel, então deixei tudo e todos para trás.      Na estação de comboios de Bruxelas, Gare du Nord, quase embarquei num comboio errado porque sincronizei-me com o horário da Gare Central, de modo que, em vez de comprar o bilhet...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Mirt Komel

Ponto de fuga

Trata-se da história de um homem que não quer perder o caminho para  casa. Ele é feito de massa de pão. Parte de casa. À medida que vai  caminhando, retira uma migalha de si próprio e deixa-a cair no chão.  Começa por retirar um dos braços. De seguida, as orelhas. O nariz. Mais  tarde, arranca uma parte da barriga, surgindo um buraco. Na cena  seguinte, olhamos através do buraco da barriga do homem. Através do  buraco da barriga dá para ver, à distância, uma casa pequena. Atrás da  janela, vê-se uma mulher idosa à mesa. A mulher encontra-se a amassar  massa de pão. Música comovente. Fim.  Trat...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Maud Vanhauwaert

Fios

A procura não começa de forma consciente. Sinto-me ligada a ela de uma forma perturbadora, inexplicável, e o seu desaparecimento deixa-me sozinha frente às minhas interrogações. Ao acordar pergunto-me onde dormirá e como vive e continuo a pensar nela, masturbando-me doce e suavemente entre os lençóis enquanto olho para as nuvens pela janela basculante. Quando passo pelas barracas de fruta no nosso bairro, vou tocando nas laranjas com as pontas dos dedos, até que encontro uma que me lembra a sua pele, uma com os poros perfeitos. Aterrei nas suas aulas de yoga devido às minhas constantes dores ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

Mudança

— Apanhe o elevador, eu vou a correr pelas escadas — grita o jovem médico descendo rapidamente escada abaixo, saltando vários degraus de uma vez. Não conseguir não é uma opção. Algumas semanas atrás, ainda no puerpério, a mãe relatou ao pediatra: o bebé não para de chorar. Na primeira consulta ouviu: amamente-o bem e vai acalmar-se. Na segunda clínica ouve: são cólicas, deixe de comer fritos, a qualidade do leite vai melhorar e o bebé vai deixar de chorar tanto. No gabinete privado, o médico pôs-se a rir: — Porque não haveria de chorar? É um bebé. Os pediatras estavam calmos, mas o choro d...
Translated from PL to PT by Katarzyna Ulma Lechner
Written in PL by Joanna Gierak Onoszko

O Sol quando Cai

I  Na manhã de 11 de julho de 1978, parte em direção a Barcelona um camião  com um carregamento de propeno líquido. O camião vem de uma  pequena cidade na Catalunha e é conduzido por um motorista que, no  meio da sua cara brilhante, usa um grosso bigode. Já trabalha há vinte anos  para a mesma empresa, com o mesmo camião, e conhece a rede rodoviária  de Espanha de cor. Para evitar portagens, escolhe sempre as estradas  interiores.  As botijas de gás não foram feitas para ficar muito tempo ao sol, e uma  enorme cisterna com vinte e cinco toneladas de propeno, apesar de só  poder conter dezano...
Translated from NL to PT by Xénon Cruz
Written in NL by Joost Oomen