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A ranhura do zangão

Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Agata Tomažič

O dia zero 

Os seus dedos deslizaram quase automaticamente até ao telemóvel, que pousou ao pé do prato da sopa. Não que esperasse que no ecrã aparecesse algo excitante, mas os velhos hábitos são difíceis de esquecer... De cada vez que veio passar alguns dias a casa, preferiu desativar a aplicação web de encontros. E ainda não saberia dizer se o fez por si se pela sua família – dado que se sentia desconfortável em deixá-los embaraçados –, ou se o fez para se proteger do desconforto de segunda mão: não suportaria que por entre os perfis avistasse as nicks deploráveis e as lamentáveis e meio disfarçadas fotos dos conterrâneos que por fora cultivavam a imagem impecável de esposos amorosos e de pais de família exemplares, mas por dentro eram completamente diferentes. Sim, as aparências eram muito importantes em Strmčnik.

“Para, larga o telemóvel”, foi a exclamação que o tocou no braço quase como uma leve chicotada, tão estrondosa foi na cozinha escura com revestimento em madeira. “Não é apropriado passares o tempo todo, durante o almoço, a olhar para o telemóvel! A tua mãe fez um almoço delicioso e tu não queres saber disso! E há tão poucas ocasiões em que podemos comer juntos!”

Inclinou a cabeça e, sem querer, curvou-se e pôs-se soturno, como um cão repreendido pelo dono que o surpreende a meio de um comportamento ilícito. E em tudo aquilo não sabemos se o cão realmente lamenta o que fez ou se, com o passar do tempo, aprendeu a evocar uma imagem de culpa porque percebeu que era assim que podia alegrar o dono. Depois de mais de vinte anos de vida, Jan sabia perfeitamente o que deixava a sua avó de mau humor e o que lhe dava alegria. Sabia também que o rol de coisas que a chateiam é muito maior que o daquelas de que gosta e que lhe acendem uma chama de alegria nos olhos. Vera não era uma daquelas avós benevolentes que mimam os netos, compram-lhes gelados e os levam ao jardim zoológico mesmo se os pais os proíbem, porque, supostamente, os seus filhos não se portam bem e não o merecem. Porque são avós e já criaram os seus filhos, e os netos lá estão para serem mimados, não é? 

Mas Vera não era assim. Mesmo que Jan se comportasse de modo irrepreensível – o que sucedia quase sempre –, como quando trazia da escola as pautas só com notas mais altas – o que sucedeu praticamente todos os primeiros doze anos da escolaridade –, não recebia da sua avó nem uma palavra encorajadora, ainda menos um gesto de ternura. E ainda menos uma nota, ou seja, o rolo de notas que os avós davam aos seus colegas de turma, cujo rendimento escolar era muito pior que o seu. No fim do ano letivo, dada a nota final, muito bom, os pais ou os avós compravam-lhes bicicletas todo-o-terreno caras, equipamento de ski topo de gama, ou seja, davam-lhes somas substanciais de dinheiro para eles poderem escolher e comprar tudo isso sozinhos. Jan aprendia a esquiar nos skis velhos, herdou a bicicleta do pai, que já não tinha vontade de andar nela, às vezes usava mesmo roupa e sapatos gastos, apesar de não ter irmãs ou irmãos mais velhos. Até que um colega de turma que muitas vezes lhe emprestava dinheiro para o lanche lhe disse, irritado, que já não lhe daria mais e que já não suportava a sua avareza, uma vez que a mãe lhe dissera que a sua família tinha dinheiro mais do que suficiente, Jan nem sabia disso. Os critérios, quem é rico ou não, deveriam ser iguais também fora de Strmčnik, ou seja, na cidade vizinha cujos habitantes gostavam de ir passar férias para a sua vila. É verdade que o seu hotel não era muito grande, nem muito luxuoso, como alguns na aldeia. Só tinha 15 quartos, mas era o mais antigo e o mais bonito, e, sobretudo, podia gabar-se de uma tradição familiar longa. Tanto a tradição como o facto de pertencer à categoria dos chamados hotéis familiares foram sendo cada ano mais apreciados e asseguravam-lhe uma ocupação de quase 100%, não só na época do inverno, mas, cada vez mais, também no verão.

A maioria dos turistas cai na armadilha e acredita que o adjetivo familiar nos serviços hoteleiros assegura um carinho e um amor especial – dos quais são unicamente capazes as famílias (o que é igualmente uma armadilha e uma ilusão). O Hotel Flajs era um hotel solidamente gerido e limpo, e os hóspedes sentiam-se bem nele e regressavam – o que não se deveu ao facto de a família ser proprietária, mas sim por nela existir pouco carinho, pouco calor humano. A razão principal, e ao mesmo tempo a única, do sucesso do hotel era Vera, cujos lábios quase nunca se curvavam num sorriso e muito frequentemente ficavam apertados numa linha reta que lembrava a fenda do mealheiro. Como se a velha senhora receasse que, com o ar exalado que lhe escapava pela cavidade oral, deixasse escapar também algo valioso, algo que fosse melhor reter e usar de outra maneira, transformar em dinheiro. 

Era assim desde sempre. A primeira memória que Jan tinha dela era essa, a qual ainda piorava com os anos. Olhava para ela, que com uma expressão soberba, desprezadora, estava sentada à mesa e fixava-o com um olhar frio, arrogante. A sua pele era cerosa e, embora bastante velha, não tinha muitas rugas – como se o seu mau humor constante a protegesse contra os vestígios do envelhecimento. Tinha os cabelos brancos sempre mais finos e as orelhas caídas – os brincos pendentes, que lhe foram oferecidos pelo pai no seu décimo aniversário e que, segundo ela dizia, a partir de então nunca mais tirou, alargaram-lhe os buracos nos lóbulos de modo obsceno. Balançavam-se como as mamas das velhas africanas, que enchiam de horror e despertavam um protomedo da morte e do envelhecer, o desfazer lento do corpo. Jan não suportava olhar para os seus lóbulos de cada vez que vinha a casa e ela o mandava abraçá-la, pelo que fechou a porta aterrorizado para não ter de avistar esses pedaços de carne flácidos. Quando começou a estudar história da arte e, nas aulas, os professores lhe apresentavam correntes artísticas diferentes durante a História, ele percebeu quem é que a avó o lembrava: uma das matronas pintadas por Rembrandt a pedido dos seus esposos, comerciantes cobiçosos de Haia ou Delft com um brilho astuto nos olhos. Faltava a Vera apenas um boné branco e o colar branco na malha preta. Não fosse isso, e ela ficaria igual, como se as telas dos mestres do Renascimento do Norte ganhassem vida. Sem esposo, claro, porque há muito falecera e Vera, em sua memória, desde que se tornara viúva, vestia preto.  

“Sim, avó”, disse Jan. “Desculpa”, acrescentou, e virou-se para a mãe, uma senhora esguia cuja cara era tanto mais encovada e gasta quanto a pele nas faces de Vera era lisa e brilhante.  

Nesse momento ouviu-se o relinchar de um cavalo. Veio até à varanda pela porta aberta porque lá fora estava já bastante quente e era um dia de sol, e os raios de sol do início de primavera, à hora de almoço, derretiam corajosamente os montes de neve junto ao parapeito da varanda. A poça no chão tornava-se cada vez maior, à noite, com a temperatura abaixo de zero voltou a gelar, mas, era claro que os dias de inverno já estavam contados. Aliás, essa era a melhor época para esquiar, quando a neve nas pistas estava ainda suficientemente compacta e os esquiadores, por volta do meio-dia, já se podiam estender nas espreguiçadeiras diante dos chalés e apanhar sol. Por isso, nesse período primaveril, também as tarifas diárias no hotel eram as mais altas. 

O relinchar aproximava-se. 

“Maldito criador!”, replicou em tom zombeiro Vera. “não posso crer que ainda anda por aí com o cavalo. Quem julga ele que é? Acha que é como os partisans que, no fim da guerra, vinham a Liubliana e as ruas ficavam cheias de excrementos de cavalo e tudo cheirava mal? Tal pai, tal filho!”, disse. Fez uma careta e pousou os talheres, como se o próprio relinchar do cavalo a incomodasse tanto que não poderia comer. 

Uma cabeça cabeluda espreitou pela porta. Parecida ao Grizzly Adams, só que com cabelo e os pelos da barba já muito brancos. Estava sem fôlego, ofegante, e com uma mão apoiou-se no caixilho da janela. Abriu a boca para dizer algo, quando...

“Não pode tocar à campainha e entrar pela porta, como as pessoas normais, civilizadas?”, começou Vera a censurar. “E se o seu cavalo urinar no jardim, vai ter de limpar os excrementos e levá-los para casa!”

“Foi encontrado... foi encontrado... o carro!”, começou, hesitante, a cabeça com uma juba desgrenhada. “O carro que Miran enterrou na neve no outono! E anunciou uma recompensa para quem o encontrar! Agora, uns esquiadores encontraram-no, encontraram-no na ranhura do Zangão!”

“Stojan, por favor, por que razão acha que isso nos poderia interessar? Não vê que estamos a almoçar? Até um cão gosta de comer em paz! Está a incomodar-nos!”

“No carro encontraram... Roman!”

Ouviu-se um tinido – o barulho produzido quando a colher lhe caiu das mãos sem querer chamou à atenção a única pessoa que, sentada à mesa, durante todo o almoço não dissera nada, apesar de ser, pelo menos uma vez, explicitamente mencionada na conversa e mencionada como boa cozinheira, uma vez que lhe coubera o mérito do delicioso caldo de carne com massa. Depois disto, os membros da família terão a oportunidade de saborear as excelentes batatas assadas e o lombo de porco preparados pelas suas mãos de ouro. Mas é certo que isso lhes será dado? Nesse momento, as mãos de Vlasta tremiam tanto que não eram capazes de segurar a colher, menos ainda de agarrar na frigideira com as batatas ainda a aquecer no fogão ou a assadeira com a carne que estava no forno. Jan teve a sensação desconfortável de que a sua estadia na aldeia natal, que imaginara como um fim de semana prolongado durante o qual não faria nada senão esquiar, se iria alargar imprevistamente.
Sentia-se como se a ponta do seu cachecol de seda, que enrolou ao pescoço numa indiferença só aparente, que era, na realidade, cuidadosamente recriada, ficasse presa nas engrenagens duma máquina. E como se puxasse com tanta força e com tanta insistência que Jan não teria outro remédio senão aproximar a cabeça, caso contrário o cachecol apertar-se-ia em volta do seu pescoço e ele acabaria tragicamente, como Isadora Duncan. Pareceu-lhe que uma coisa arrancara e que já não seria possível pará-la. Já não conseguia fingir não ter ouvido aquilo que ouviu. Ou aquilo que se seguiu.  

“Está morto, com a cabeça cheia de sangue, foi a única coisa que vi, depois, corri até aqui...”

Vlasta afastou o prato com tanta força que a sopa espirrou sobre a toalha encerada xadrez, e com repugnância, como se no prato à sua frente avistasse nada mais nada menos que a cabeça cortada e ensanguentada de João Batista. Depois levantou-se e saiu a correr da cozinha, seguindo a curva do balcão da receção até à porta com a inscrição “Toilette”. Na receção, correndo em pânico, quase atropelou dois hóspedes com o equipamento de ski completo que estavam ali parados. Felizmente, estavam tão absortos na conversa que não prestaram atenção a uma mulher louca a correr. 

“Sim, mas se já no primeiro dia comprámos um passe semanal, temos de estar seguros de que fará bom tempo durante todos os sete dias”, disse ele.

“Digo-te que fará. A previsão meteorológica semanal é ótima”, disse ela, vestida de casaco de ski de penas cor de rosa com colarinho branco de pele, e pôs o seu telemóvel diante dos seus olhos. “Olha, sol até ao fim de semana”, disse ela com um tom de triunfo na voz, como se com as próprias mãos, todos os dias, trouxesse a esfera ardente ao firmamento, ou, pelos menos, como se ela mesma fizesse a carta meteorológica para toda a zona de ski.  

“Está bem, que assim seja. Digamos que acredito em ti”, disse ele.

“Não tens outra hipótese senão acreditar em mim. Tenho sempre razão”, disse ela. E no momento em que a sua mão iniciara já o gesto de lhe dar uma bofetada – como se fosse um jogo –, ela comentou: “Assim, não só poupamos no passe, que não fica tão caro se comprado semanal, em vez de ser comprado todos os dias, mas também no tempo, porque a cada manhã não teremos de ficar na fila, na caixa nas pistas. Já para não dizer que temos desconto na compra do passe de três horas hoje à tarde!”

Olhou para ela admirado e abanou a cabeça, como se não pudesse crer na riqueza – uma esposa poupadora e esperta – que o destino lhe oferecera. Ela deu uma volta no salto e virou-se para a receção, exatamente no momento em que a porta da casa de banho abriu e cambaleou pela porta uma mulher de rosto palidíssimo, cuja tez parecia ainda menos saudável em contraste com a coroa de cabelo preto desgrenhado. 

“Bom dia, as chaves do quarto que marcámos, por favor”, disse a mulher com o equipamento de ski completo. “E rápido, que estamos com pressa!”

Vlasta acenou com a cabeça em silêncio, passou por trás do balcão da receção, tocou no rato e ficou com o olhar fixo no ecrã do computador. Por momentos, pareceu-lhe que iria ficar enjoada outra vez e que iria vomitar toda a bílis ali mesmo, no balcão e nos arquivadores debaixo do balcão, ou, talvez, na forma do arco, nos hóspedes que se apoiavam no balcão e a olhavam curiosos. Continuava convencida de que já não havia mais nada por expelir, que o estômago estava completamente vazio, que não estava enjoada, que o que se passara não era assim tão grave... Depois, estendeu o braço atrás das costas e, sem o acompanhar com o olhar, agarrou as chaves, porque já conhecia onde elas estavam de memória. Então, não exatamente de memória, tirou-as da única gaveta que ainda estava cheia.  

“Façam o favor, senhora e senhor... Muito bem-vindos ao Hotel Flajs. Uma ótima estadia!”, disse Vlasta, e deixou-se cair na cadeira, pálida como o pó de arroz no rosto de um palhaço de circo. Quando lhe deslizou uma lágrima do olho, estava ainda mais parecida com ele. 

“Vlaaaasta! Vem acabar de comer!”, ouviu-se uma voz vinda da cozinha, que era de Vera. “O teu caldo já arrefeceu! E não vamos deitar para o lixo as batatas e a carne assada!”

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