View Colofon
Original text "Elogio Del Huracán" written in ES by Alejandro Morellón Mariano,
Other translations
Proofread

Paulo Capinha

Mentor

Manuel de Freitas

Published in edition #2 2019-2023

Elogio do Furacão

Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano

Apreciei sempre a violência do quotidiano: por exemplo, a de um copo que se parte na escuridão. Às vezes, pergunto-me se essa memória é realmente minha. Revivo a cena com uma alegria difícil de conter: o objeto que cai e se desintegra e se torna estrépito surdo e logo tumulto de vozes a meio da noite. A minha mãe carrega no interruptor para iluminar os vidros espalhados. A sua mão aberta no ar, por cima de mim. O som da bofetada que não se parece, de modo algum, com o som do vidro contra o chão e a sensação de compreender que tudo faz parte da cerimónia. A violência que principia com um copo e termina com a dor que uma mãe impõe ao seu filho.

Já passaram muitos anos desde então e já não existe copo nem mãe nem vidros espalhados nem esse menino que eu era, aceitando a dor da bofetada. Agora, vivo em Ehio com o resto da minha congregação. Aqui, nesta terra, há violência, assim como também há harmonia, dado que a Amalia passa de vez em quando, e todos gostamos muito da Amalia.

Sabemos quando volta devido à densidade do ar, ao relinchar dos cavalos, ou pelo modo como os nossos filhos gritam sem qualquer explicação. Às vezes, os miúdos são os primeiros a sabê-lo e choram, e nós julgamos que é por lhes doerem os dentes ou por terem sono, até que as persianas chocam contra a parede e o cata-vento do telhado começa a chiar; então, damo-nos conta de que ela está, de novo, aqui.

Quando a Amalia chega, a terra vermelha da estrada desloca-se, gira em redemoinhos, e dispersa-se pelo ar.

Quando a Amalia chega, dois ou três dos nossos entoam uma canção.

Quando a Amalia chega, benzemo-nos, agradecemos ao vento e apressamo-nos a deixar as nossas oferendas antes que ela alcance a zona das casas.

Nestes quinze meses depois de ter passado pela última vez, só tivemos tempo de recuperar o rebanho, reforçar os alicerces, reconstruir o muro, e cavar outros fossos para a gente nova que chegou este ano. O Cristian e os mais jovens construíram um teto duplo para todas as casas e os demais tratámos da comida e da água. As crianças desenharam umas linhas coloridas na estrada para que ela se oriente. Toda a terra elegeu já as suas oferendas: panos bordados e cabelo entrançado e metais preciosos e figurinhas de madeira e alguns dentes esculpidos. Este ano, os da terceira casa vão oferecer o seu terceiro filho, o mais pequeno, que está doente. Entregam-lho para que ela o envolva e o leve para outro sítio, onde não exista dor. Dizem também, ouvi-os sussurrá-lo em voz baixa depois das reuniões, que acham que ela, a Amalia, é o braço invisível de Deus.

Deixamos tudo na estrada e esforçamo-nos a sério para que fique bem apresentado e disposto, para que ela o veja e o queira levar consigo, ainda que leve quase sempre tudo. Noutros anos, quando deixou alguma coisa, o dono da oferenda tem de partir para que toda a comunidade não caia em desgraça. Este ano, a nossa filha Sally lembrou-se de que a nossa oferenda seja o Gianfredo, o vitelo, que pintámos de vermelho e atámos a um poste enfeitado com flores. Está um pouco nervoso e não pára de mugir.

Ainda temos tempo de ver como desaparecem, ao longe, as primeiras árvores. Ficamos todos juntos e damos as mãos para observá-la — uma sombra branca e espectral que se arrasta sem direção, ainda que todos saibamos que se dirige para nós, como sempre acontece… Observamos, também, os deslizamentos de terra, as primeiras carroças a arrastarem-se rumo à voragem, os objetos menos pesados a elevarem-se no ar em círculos concêntricos.

“Oh, mensageiro do céu, Amalia, senhora de todos os ventos: aceita as nossas oferendas.”

Depois da oração, soltamos as nossas mãos e fechamos os animais que temos tempo de capturar. A seguir, apressamo-nos a refugiar-nos atrás do muro de cimento e pedras, o nosso fortim, e colocamo-nos de maneira a que cada um possa ter um buraco em frente para observar tudo. Permanecemos juntos e esperamos em silêncio. Não falamos uns com os outros pois gostamos de ouvir como se aproxima, as vidraças que estouram, milhares de objetos que se partem, a primeira casa que se desmorona; ouvimos gritar — um grito débil, quase sem forças — o filho doente dos da terceira casa. Pode ser que seja só eu, mas também me parece ouvir o nosso Gianfredo, ainda que, seja como for, chegue um momento em que só a ouvimos a ela. Aproximamo-nos todos mais dos nossos respetivos buracos, para vermos. Ninguém quer perdê-lo.

Dentro da Amalia estão todas as coisas que deixámos sobre a estrada: três vacas, um vitelo, cinco cavalos, um baralho de cartas, uma banheira cheia de leite, um menino doente, uma escultura feita de fruta, um instrumento de cordas, uma coleção de livros, comida e água com abundância; estão, igualmente, todas as coisas que não deixámos mas que, ainda assim, a Amalia se deu ao trabalho de levar consigo: escombros de pedra, árvores, carroças, casas inteiras, peixes do rio, algumas ovelhas perdidas, porcos selvagens que encontrou não se sabe onde, cinco pessoas já mortas, os corpos transportados como que por uma nuvem de moscas.

Dizem — a mim, nunca me aconteceu vê-lo — que estar mesmo debaixo, no preciso ponto em que tem origem o impulso, é como ver um túnel que está diretamente ligado ao céu, e que, nesse momento, não há ruído, não há brutalidade, só há uma música como que de coisas que flutuam, e que tudo abranda. Àqueles a quem isso acontece, muda-lhes a vida e aufere-lhes um melhor tratamento por parte da vizinhança. Eu, um dia, também gostaria de vê-lo, de ouvir o vazio e compreender essa plenitude de que falam. Se calhar, o que se ouve lá dentro não é o silêncio mas sim um vidro que se parte na escuridão e o som de uma bofetada bem dada. No entanto, não sei. Talvez para o ano, quando a Amalia voltar.

More by Miguel Martins

Notas sobre a vida de Frances Donnel

Prólogo Em 1945, Frances Donnell, escritora e conhecida criadora de aves, nasceu nos Estados Unidos. Em 1983, fingiu morrer de lúpus, doença que a afligia desde a sua juventude. Meses depois da sua tentativa, descobriu-se que tinha sido tudo um boato. Após uma pequena polémica, a que chegaremos no momento oportuno, Frances permaneceu no anonimato durante várias décadas. Já no século XXI, chegou a Espanha com a dureza da doença às costas, pois aquela não tinha deixado de crescer dentro de si. Costumava dizer que tinha abandonado o seu país no momento em que se tornara demasiado velha para sent...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Mudar de ideias

A Maixa recomenda-me que pronuncie todas as sílabas, sem me armar em londrina, que não me alongue muito no enquadramento teórico, que experimente o equipamento informático antes de começar a defesa, que seja humilde, que tome nota das perguntas e sugestões do júri e que os convide para almoçar num restaurante de menu fixo. A June opina que isso do menu é muito foleiro e sugere-me um refeitório na faculdade, uma citação de Weber, meio Lexatin ao pequeno-almoço e dar-me boleia até Gasteiz. Aceito a bibliografia e o transporte. Saímos de Bilbau com a minha mãe, a minha prima e o meu namorado co...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez

Todos os bichos do campo

Como era habitual, naquela manhã acordou com fome. Os grasnidos dos patos que sobrevoavam o telhado ressoaram nas paredes do dormitório e a miúda sentou-se na cama. Os patos tinham chegado a casa da sua avó vindos de longe, talvez de outro continente, agitando as suas asas. De um dia para o outro, tinha deixado de ir à escola e mandaram-na para ali, com a sua avó, que vivia junto a um lago, a quilómetros da aldeia mais próxima. Ela não interessava a ninguém. Os seus pais procuravam intimidade, ou estavam a trabalhar, lá na cidade, não sabia bem. Aquilo de que não duvidava era dos tremores do s...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Sempre vivemos nesta aldeia

Mudámos de pele. Digo-o a mim mesma em frente ao espelho de água que o tanque nos proporciona. Já não existem vacas na aldeia, pelo que este bebedouro é nosso, como quase tudo o que nos rodeia. Nosso e de ninguém. Património das que resistem e residem. A minha filha, que tem restos de lama e folhas secas no cabelo, agarra-se ao meu corpo como um animalzinho. Há muito tempo que não usamos o carrinho de bebé porque os caminhos de pedra estragam-no e os meus músculos habituaram-se a ela, ao seu peso e aos seus contornos, adquirindo contornos novos, atléticos, impensáveis. Já não sou uma mulher ma...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez

Pássaros que cantam o futuro

Parece uma mistura impossível de coruja, morcego, pinguim e texugo; tem a pelagem azul, os olhos grandes e vermelhos, o bico amarelo; não tem mãos mas sim duas asas pequenas que se acionam ao ligá-lo. Feliz aniversário, diz ela. Noa pensa que a compra valeu a pena, ainda que tenha ultrapassado um pouco o seu orçamento. Precisou de dez mesadas para reunir o dinheiro mas, agora, ao vê-lo a ele tão entusiasmado, alegra-se por ter renunciado ao cinema, ao parque de diversões e, inclusivamente, à pista de bólingue das Sextas-feiras com as suas amigas. Daniel segura o boneco como se fosse algo v...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano
More in PT

O exílio

A cama era como uma caravela que trespassava as águas da noite. Abraçados, ambos tinham a textura de uma onda sombria, iluminada, de vez em quando, por um raio de luz. A caravela flutuava serena e misteriosa, e à volta a paisagem era apenas a infindável extensão das águas, sem que esta fosse assustadora. Tinham-se reencontrado há pouco tempo. Por vezes, jogavam ténis. Às vezes bebiam mesmo uma cerveja depois. Tais camaradagens efémeras aconteciam muitas vezes entre os empregados solitários que tinham sido transferidos para aquela cidade. Geralmente, preferiam transferir solteiros. Contudo, cu...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Anna Kalimar

Very Important Person

Mais uma vez, passei o dia inteiro a olhar fixamente para os números luminosos por cima do elevador: 8… 7… 6… 5… 4… 3… 2… 1… “Bom dia, senhor Seljak.” Cumprimento-o sempre, uma vez que sou um profissional. Responde-me com silêncio, ele também o é. Quando tenho sorte, um vinco resplandece no seu rosto de pedra. Se tem um bom dia, levanta a sobrancelha direita, como se me quisesse dizer: “Eu sei quem és tu, mas os meus pensamentos são de diretor.”   Quantas vezes disse a mim mesmo que ia deixá-lo em paz. Que não iria fazer caso dele, como ele não faz caso de mim. Mas a minha mãe ensinou-me a ser...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Andraž Rožman

O nosso pai

O corpo inteiro do meu meio-irmão tomou a forma da sua indiferença. As suas pernas, ligeiramente arqueadas e enfiadas numas calças de ganga desbotadas, acabam em pés que quase não levanta do chão enquanto caminha, pelo que a sua presença é constantemente acompanhada por um som de arrasto dos pés. A parte superior do seu corpo é como um bolo deformado colocado à volta da cintura. Tem ombros curvados para a frente e braços esguios que só levanta quando é mesmo necessário. Mas aquilo que primeiro me salta à vista quando ele surge por trás da porta de casa são as suas sobrancelhas e os cantos da b...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Lotte Lentes

A ranhura do zangão

O dia zero  Os seus dedos deslizaram quase automaticamente até ao telemóvel, que pousou ao pé do prato da sopa. Não que esperasse que no ecrã aparecesse algo excitante, mas os velhos hábitos são difíceis de esquecer... De cada vez que veio passar alguns dias a casa, preferiu desativar a aplicação web de encontros. E ainda não saberia dizer se o fez por si se pela sua família – dado que se sentia desconfortável em deixá-los embaraçados –, ou se o fez para se proteger do desconforto de segunda mão: não suportaria que por entre os perfis avistasse as nicks deploráveis e as lamentáveis e meio dis...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Agata Tomažič

Revolta inversa

A sua vida com Carmen Ottomany começara muito abruptamente nos  finais do décimo primeiro ano. No dia em que tinha decidido deixar a  cidade, procurou uma fulana alta da turma mais próxima, uma tal Fahrida  (o seu pai era do Irão), mas que se apresentava como Frida. Saiu da cidade  pois estava convencido de que ao partir os limites ficariam para trás, uma  convicção absurda, mas se alguém nunca a tiver será digno de piedade. Foi  encontrar a tal Frida entre um grupo de raparigas nas traseiras de um  prédio, fumando e rindo. Fumava-se naqueles tempos, mesmo nos liceus  dos snobes como era o Sub...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Cătălin Pavel

Coisas que nunca mudam

E eu ainda era vazio de medo por ti, por isso punha a mão para cima, pedindo descendência da tua. E a tua mão lá descia, música de elevador, quente como paninhos, tinha veias como as esquinas das cobras que estão sempre caladas, roías as unhas até encolherem como conchas, e a tua mão lá descia descendência para se dar à minha e entrelaçávamo-nos por meio dessas minhocas que são os dedos. Coitado de ti. Antes disso, andaste comigo ao colo, gemias músicas de embalar a meio da noite quando também precisavas de ressonar. Limpaste-me o rabiosque várias vezes, tocaste com as minhocas nos meus cocós...
Written in PT by Luis Brito