View Colofon
Translations
Mentor

João Paulo Cotrim

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Coisas que nunca mudam

Written in PT by Luis Brito

E eu ainda era vazio de medo por ti, por isso punha a mão para cima, pedindo descendência da tua. E a tua mão lá descia, música de elevador, quente como paninhos, tinha veias como as esquinas das cobras que estão sempre caladas, roías as unhas até encolherem como conchas, e a tua mão lá descia descendência para se dar à minha e entrelaçávamo-nos por meio dessas minhocas que são os dedos.

Coitado de ti. Antes disso, andaste comigo ao colo, gemias músicas de embalar a meio da noite quando também precisavas de ressonar. Limpaste-me o rabiosque várias vezes, tocaste com as minhocas nos meus cocós que deixavam lastro e secaste das roupagens o meu xixi. E antes disso tiveste de dizer à minha mãe que ela era bonita para a levares para a cama e antes disso disseste a outras porque antes muito antes já te doíam os tintins pois tinhas de me depositar em algum lado, com outros girinos brancos iguais a mim e iguais aos quais há nos meus testículos que hoje descaem até evocarem o conceito dos teus. Já tenho 35 anos e não vou para novo. Com a minha idade, foste meu pai.

E ainda não te tinha medo. Se te pedia a mão ela lá descia e era de veias como serpentes, veias artísticas e irascíveis tinha o meu pai e irascível é aquele que tem tendência para as iras. E merecia, oh se merecia, só por ser quem sou, que me desses com a mão em vez de me dares com a mão, se mais tarde fizesse merda na merda da escola. Os pais batem, os filhos não aprendem e há coisas que nunca mudam.

Davas-me tabefes pois estavas cansado, roías as unhas pois eras exausto sobretudo de ti e entendo plenamente se também estou cansado de mim. Mudar? Só se for para rir.

Estou farto de ser o merdas que temias que me tornasse, ainda a fazer merda na merda da escola da vida, que já agora é uma merda de expressão, é como os clichés que enojam por fazer sentido. E há coisas que me irritam, como a ti te irritavam todas as coisas nos dias-não, se te passava uma nuvem e trovejavam os estalos. Quando também me sinto prestes a bater, em mim, em alguém ou na porta dos armários, concluo que viver é herdar, tudo tão irremediável quanto isto, defeitos, problemas e traumas incluídos. Há um azedume no tempo - os iogurtes também azedam e é só a solidão no sótão da boca quando provamos a velhice. Nada muda.

Irritas-me. E irrita-me ver as notícias sobre os que escapam ao fisco em grande estilo. Irrita-me que venham parar cartas a minha casa mostrando por muito mais que a+b que lhes devo dinheiro. Nunca ficavas a dever dinheiro, assim é que te cansavas e davas tabefes porque tinhas medo, roías as unhas porque te esgotavam. Devo dinheiro à autoridade, nunca saboreei nada nos teus estalos como trovões, tenho só problemas com o que me é imposto, antes agora e para sempre. Quando chegar a minha morte, vai ser a sua imposição que me chateia. Por enquanto abomino o sistema social a que me trouxeste, perdoa mas é verdade, isto é tudo só uma falcatrua piramidal que começa na merda da escola e o que me lixa é não ter como fugir, estar em apuros, sem trabalho e devendo trocos aos fiscos por causa dos tempos em que trabalhei sem declarar que tinha um trabalho, será que me ouves ai não gosto nada disto, nunca ouviste e nada muda.
Se pousar a mão para cima, talvez me dês a mão ou talvez me dês com ela. E perdoo-te, se nos conseguirmos perdoar-me a mim, que devo dinheiro ao estado e possivelmente desleixo nódoas de cócó nas cuecas que uso hoje e usei ontem, porque tu não me mudaste hoje.

E houve as mulheres. Antes as tuas, depois as minhas. Já foste puto com eu, apaixonado pela tua mãe como eu pela minha que também foi tua. Viraste adolescente, surgiram-te os pelos e as borbulhas, e a vontade de as cheirar, às mulheres, não às borbulhas que eram sintoma de demasiada vontade, como eu, que desde a adolescência até agora me guiei por elas como os marinheiros pelas estrelas e o que são as borbulhas se não estrelas nascendo no palco de um Don Juan?

O meu pénis também evoca o conceito do teu e cansou-se, cansou-me, cansou-nos de tanto buscar e encontrar, tanto buscar e falhar, falhar de novo, várias vezes com a mesma, muitas ao mesmo tempo. Há coisas que nunca mudam e, se me sinto tu, se te sinto em mim muitas vezes como se fôssemos uma e a mesma coisa e essa coisa é a passagem do tempo, muitas das muitas vezes são quando lhes conto as minhas histórias e as minhas artes. O tal charme, o tal macho, o tal ser experiente, sempre a mesma lenga-lenga porque tudo o que viveste eu também vivi e as mulheres sentem isso.

E houve o futebol, a que me levaste, nos estádios e nas televisões. E houve o amor aos cães, maior do que às pessoas, porque os cães gostam mais das pessoas do que elas umas das outras.

E houve o dia em que saíste porta fora para não mais voltares, e houve o dia em que voltei à tua vida, já sem borbulhas mas com vontade de te contar que conto as mulheres que conto. Faz de conta que não fui eu e faz de conta que não foste tu.

E entretanto, adoeceste. Depois morreste mas ainda me lembraste que tinha de pagar os impostos porque eram eles que pagavam o hospital onde foste um tipo honroso em decadência atroz, entubado e cheio de feridas mas ainda assim tentando fazer corar as enfermeiras que coravam, não por profissionalismo mas por saberem que até os quase mortos podem continuar a ser belos, se forem experientes.

E houve o dia em que decidi mudar. Não quero morrer tão doente como tu, não confio no sistema e por isso faço de mim hospital todos os dias. E não vês ou talvez vejas, mas é também para ti que faço desporto e respiro fundo, invoco a meditação, evito os açúcares e tomo banhos frios. A doença que foi a tua morte trouxe-me a saúde e é esta a história do mundo moderno. Pais doentes fizeram filhos doentes, mas que querem ser saudáveis. Talvez entendesses hoje, se te dissesse com mais certeza que nunca que me cansei de ser o fim da linha. Mudei de hábitos, como que em tua honra. Continuo doente, doente de ser vivo, porque há coisas que nunca mudam. Se estou feliz? Às vezes. Se chorei a tua morte? Não. Ainda não.

More by Luis Brito

Esmeralda da depressão

ESMERALDA Velas, em vez de candeeiros. Baldes, em vez de bidés. Abortos acidentais, legais e com fartura. Era a Idade Média e dava-se mais um parto caseiro. Feliz, nasceu luz e tratava-se da primeira menina com olhos azuis. A primeira vez, nascidos na terra, por debaixo do céu celeste, oculares tons do que está por cima, e não por baixo. O primeiro milagre da estética, os olhos castanhos e/ou pretos do reino nunca tinham visto nada assim. A senhora veio à rua. Trazia hortaliças biológicas numa mão, o recém-nascido na outra. Queria chegar à Igreja para mostrar aquilo, talvez o padre soubess...
Written in PT by Luis Brito
More in PT

Sinopse

A história que comecei a escrever tanto poderá tornar-se parte de uma antologia de contos breves – centrados em diferentes personagens ligadas entre si – como um fragmento de um romance young adult. Estamos no futuro próximo e, dentro de um chat de pais apreensivos, sucedem-se alarmismos e escândalos, fluindo em catadupa numa comunidade restrita, aparentemente atenta e justa, embora na verdade lívida de invejas e individualismos. Emerge com força – ao desenrolarem-se disputas, mentiras, poses e afirmações de pequenos poderes mesquinhos – a total incompreensão da vida emocional dos filhos por ...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Arianna Giorgia Bonazzi

Calcário

Ora, está visto que leva muito tempo para uma cabeça de chuveiro ficar entupida com calcário. Agora que me balanço aqui, com o tubo do chuveiro enrolado à volta do pescoço, meio pendurado no corredor, meio pendurado por cima das escadas, penso: se todos os meus amigos tivessem visto a casa de banho, tinham percebido logo. Se todos tivessem subido uma única vez ao andar de cima, como fez a Ema naquela tarde, teriam olhado para a cabeça de chuveiro, teriam aberto e fechado a torneira, teriam visto a divisória de vidro calcificada do duche, teriam reparado nos pelos da barba feita à pressa no lav...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Outra Cidade

Outra cidade Amesterdão no limiar do outono era colorida e caprichosa. O sol alternava-se com a chuva, e isso repetia-se uma e outra vez tal como Ave-Marias num rosário. Encontrava-me debaixo da ponte, esperando até que um dos breves aguaceiros parasse. Tinha planeado uma viagem de bicicleta pelos arredores de Amesterdão. Quis ver aqueles famosos pólderes - canais de água que cruzam os prados verdejantes dominados por moinhos de vento que esticam os seus braços, feito uns espantalhos no campo. Era suposto ser a minha primeira viagem na nova cidade. A primeira experiência que de alguma forma i...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Anna Háblová

Depois da Última Ceia

Têm sido dias fantásticos. Morrer é assim, lembro-me de cada minuto. É como se estivesse deitado sobre o mapa do agora, em alto relevo. Estou de costas, para sentir cada pico de montanha, cada vale, todas as planícies. A vida não corre para a frente nem para trás, é só agora, agora, agora. Ao fim de algum tempo sinto uma dor extremamente localizada, tal qual um punhal, e fico extraordinariamente acordado, como no instante em que o juiz me condenou à morte. Morrer é assim, acontece várias vezes, mas uma delas é a definitiva. A sensação de fim pode durar muito tempo, comigo dura desde o anúncio ...
Written in PT by José Gardeazabal

A Tapioca

Foi o ronco do motor da carrinha da associação que anunciou que era hora de almoço naquele dia em que o sol de tanto queimar não se via. O velho estava debaixo da figueira, envergando uma camisa muito suja toda desabotoada, com um riso irónico na boca fechada para segurar o cigarro. Ficou a ver a brasileira - duas grandes manchas de água debaixo dos braços e as costas da farda igualmente ensopadas - sair do veículo; ir buscar as marmitas e dirigir-se para o anexo que funcionava como cozinha onde era hábito ele estar. — Tio João! Tio João! O riso a contrair todas as rugas do rosto, abrindo re...
Written in PT by Daniela Costa

Bárbaros no Império Romano

Porque caiu o Império Romano? Esta pergunta atormentou a civilização  europeia em toda a sua história, a par (de modo por vezes explícito, por  vezes subentendido) com a reflexão sobre as consequências que aquele  acontecimento longínquo tem no presente. Impressionados pelas ruínas  monumentais de Roma e instruídos sobre a sua herança imaterial, olhámos  com admiração as suas conquistas económicas, tecnológicas e culturais: e  perguntámo-nos qual teria sido a evolução da civilização ocidental se a  queda do Império não tivesse modificado as condições individuais de vida  e redimensionado drast...
Translated from IT to PT by Ana Cristino
Written in IT by Fabio Guidetti