View Colofon
- "Ewolucja trzonowca" translated to PL by Olga Niziołek,
- "Evoluce jednoho zubu" translated to CZ by Blanka Juranová,
- "L'evoluzione di un dente" translated to IT by Olga Amagliani,
- "Evolucija modrostnega zoba" translated to SL by Nika Štrovs,
- "La evolución de una muela" translated to ES by Daniela Martín Hidalgo,
- "Evoluția măselei" translated to RO by Alexa Stoicescu,
- "Evolucija umnjaka" translated to SR by Bojana Budimir,
Arie Pos
Paulo Capinha
A evolução de um dente do siso
Mais 47 noites
O assistente do dentista tira o gancho da minha boca.
– Está a ver isto? – pergunta quase com orgulho.
O gancho está coberto com uma camada de saliva acinzentada.
– Isto saiu da bolsa.
É uma palavra estranha para designar um buraco entre a gengiva e um dente do siso. Uma bolsa parece uma coisa grande, onde se pode guardar chaves, e talvez até gel para as mãos ou um telemóvel. Tudo o que está dentro da minha bolsa são restos de comida triturados com alguns meses.
O dentista aparece pouco depois e aponta para o meu maxilar no ecrã do computador. O dente do siso inferior do lado direito está deitado. As raízes estão espetadas para trás e a parte de cima pressiona o último molar.
– Porque é que está assim? – pergunto.
– Não sabemos – responde. – Às vezes os dentes do siso mexem-se. Daqui a três semanas tem de ser arrancado.
À noite não consigo adormecer. Só penso no dente que teve de se mexer. Deixou de estar à vontade dentro da gengiva. Nunca apareceu à superfície, sempre na escuridão. Talvez tenha sido isso. Um dente do siso também quer ver alguma coisa. Lembro-me do estafeta de refeições a quem faltava um dente. O seu riso aberto mostrou uma série de dentes brancos, com um buraco no meio. Gostava de saber onde estará o dente dele agora. Terá sido substituído por um dente novo?
Talvez devesse ir ao Google, é sempre boa ideia à meia-noite. Está lá explicado que a humanidade se encontra numa fase intermédia. O nosso maxilar está a ficar cada vez mais pequeno, porque desde a revolução industrial comemos cada vez mais comida processada, mas os dentes do siso ainda não chegaram a essa fase. Continuam tão grandes como há milhares de anos. Os dentes do siso não obedeceram à vontade da evolução. Não pararam de crescer na cartilagem mole onde já não havia lugar para eles. E lá aparecem, grandes e desajeitados, quando uma pessoa já está na iminência de se tornar adulta. Um bocado de dente de outra era.
Mais 27 noites
Estou sentada em frente dos cacifos dos médicos no hospital. Médicos de batas brancas passam por mim. Pergunto-me se não devia estar mais nervosa. Até aqui nunca precisei de tirar nada da minha boca. Enquanto estas ideias me ocorrem, bato os calcanhares um contra o outro. Abre-se uma porta, talvez seja a minha vez, um médico com a barba por fazer sai. Na mão tem uma pequena serra. Deixo-me cair para trás na cadeira. Na aula de trabalhos manuais na escola básica utilizávamos exatamente as mesmas serras. São perigosas. O Mário cortou a ponta do dedo com uma. Um acidente.
Talvez este médico ache graça a percorrer o hall de vez em quando com uma coisa destas na mão para assustar os novos pacientes. Ou talvez me operem mesmo com uma serra daquelas daqui a pouco. Abre-se outra porta.
– Pode entrar. O cirurgião-dentista vem já.
Com um gesto amplo, a assistente aponta para a cadeira. Coloca sobre a minha cabeça uma folha verde-clara, com uma abertura no meio para a minha boca. A luz da lâmpada atravessa a folha de plástico, tal como a sombra da assistente.
– Depois posso ficar com o dente? Não consigo olhar para a assistente.
– Sim, claro.
Já estou a imaginar o dente na minha mesa de cabeceira. Talvez lhe pegue de vez em quando. Quando não conseguir dormir passo os dedos pelas arestas agudas que estiveram tanto tempo escondidas e que agora finalmente vão poder assumir-se à luz do dia. Da mesma maneira que eu quero estar atenta e aguda. Ou um colar! Também posso mandar fazer um colar com ele.
– Picamos mais uma vez – diz o cirurgião-dentista.
Os meus pés enterram-se ainda mais fundo no estofo da cadeira. A agulha fria espeta-se novamente na gengiva. Sinto-a deslizar entre os meus nervos. Um sabor a ferro à mistura com cloro. A dor pulsa até ao cérebro, pequenos choques elétricos que sobem e descem.
A segunda anestesia funciona melhor, já não sinto nada, só ouço um imenso estalar que parece vir de todos os lados. Tudo demora muito tempo, quero que as sombras parem de se mexer por cima de mim. O dente esforçou- se muito para estar cá, as suas raízes penetraram profundamente na minha carne. Todo este remexer não pode ser bom sinal. Talvez alguém devesse ter morrido por causa de um dente do siso, penso, aí a evolução teria percebido o que estava em jogo. Assim, continuam a voltar sempre, porque são sempre arrancados com relativamente pouco esforço. Tenho de afastar este pensamento, talvez seja eu a pessoa que vai morrer por causa de um dente do siso.
De repente a assistente encosta uma coisa fria à minha bochecha.
Quando levanta a folha que me cobre a cara, o dentista já desapareceu. Devia sentir mais espaço no meu maxilar, mas tudo parece ainda mais atulhado.
– O dente foi esmagado – diz a assistente.
Eu próprio tenho de concluir que não poderei levá-lo para casa. O dente do siso está partido aos bocados em cima de uma folha de hospital verde-clara suja de sangue. A assistente amarrota tudo quando se apercebe de que estou a olhar para ele.
– Até à próxima – diz, sem levantar o olhar. Espero que não.
Mais 23 noites
O inchaço pode aumentar nos primeiros cinco dias. Leio pela centésima vez o impresso que me deram. Baixo o papel e olho para mim no espelho. Do lado direito há um inchaço do tamanho do meu punho e há derrames de veiazinhas que percorrem a minha bochecha como se fossem relâmpagos. Espalhou-se por todo o lado direito da minha face um hematoma que está amarelo nos bordos. Tenho o aspeto de alguém que foi severamente agredido.
Desde que o cirurgião me cortou o maxilar deixei de conseguir dormir.
Não consigo deitar-me sobre o lado direito. A dor é demasiado acutilante, como se alguém estivesse constantemente a tentar arrancar-me o dente. Já passou muito tempo, mas continuo a sentir a mesma sensação. Como se fosse a punição do dente, que me quer lembrar a cada momento o que lhe fiz. De três em três horas, tomo analgésicos. Primeiro dois paracetamóis, depois a dose de ibuprofeno mais forte que está à venda, para voltar de novo ao princípio. À noite não preciso de pôr o despertador porque não consigo dormir com as dores.
Mais 22 noites
Talvez eu tenha de ser mesmo o primeiro ser humano a ensinar à evolução que o dente do siso já não é desejado. Devo morrer para que o resto da humanidade seja resguardada de noites sem dormir e de bochechas azuis do tamanho dum montículo de toupeira. A dor é demasiado grande, demasiado presente, demasiado palpitante. O dente do siso que foi esfarelado e que está agora algures nos resíduos hospitalares, talvez numa lixeira, no meio de todos os outros dentes do siso esfarelados dos últimos dias.
São 4h03 e ligo para o posto clínico. Uma mulher com voz rouca atende.
– Na passada terça-feira foi-me arrancado um dente do siso e isto não está nada bem – digo com voz trémula.
A mulher não diz nada.
– Tenho tantas dores que não consigo dormir já há alguns dias… Está muito inchado, não consigo fazer nada.
Agora que admiti tudo, vêm-me as lágrimas. Quase não me lembro de ter chorado com dores. Talvez aquela vez que uma vespa me picou, quando me assustei tanto com a dor que só senti passado um bom bocado.
– Ó minha querida – diz ela – neste momento não está cá nenhum cirurgião-dentista, mas posso dar-te um analgésico até segunda-feira. E na segunda vens aqui ao serviço o mais cedo possível. Deixo a medicação aqui pronta para ti.
– Está bem.
– Não há razão para teres de aguentar tantas dores.
Vou dizendo que sim com a cabeça às palavras dela mas as lágrimas não param. Do lado de lá, ela ouve tudo.
– Podes vir cá?
As minhas calças de jogging abanam ao vento, está mais frio do que pensava. Fecho mais ainda o fecho éclair do meu casaco. Faz-me bem ter um objetivo. Ignoro as tonturas, a minha missão é ir ao hospital. Estão à minha espera quatro comprimidos de morfina. Trago uma camisola idiota que um amigo meu me deu. A camisola tem escrito I can’t fuck. Odeio camisolas com coisas escritas. Comecei a transpirar na bicicleta, uma vez no posto clínico abro o casaco, mas não sinto alívio.
– Não deve ser tão grave assim – diz o porteiro. Faz uma careta e eu fecho rapidamente o casaco até cima. Atrás do balcão da sala de espera está uma mulher que me dá os comprimidos sem me pedir identificação.
– Dorme bem – diz.
Só tomo o primeiro comprimido quando já estou deitada. Vejo Sex and the city para tentar não sentir conscientemente o efeito, mas sinto. Uma grande nuvem estende-se por cima de mim. Entro quase imediatamente numa embriaguez que me empurra para o sono. No sonho estou fechada numa caixa, empurro com toda a força a tampa, mas não consigo abri-la. Durmo oito horas seguidas. Às três da tarde acordo com uma dor ardente. A primeira coisa que faço, é olhar-me ao espelho. A minha bochecha cresceu mais ainda, só consigo abrir a boca uns milímetros. Não é só o dente do siso que é um resíduo de há centenas de anos, é todo o meu aspeto físico que está a ficar medieval. Mando selfies para os meus amigos que riem e pedem mais fotografias.
Todos os dentes do siso que ainda estão na minha boca podem lá ficar, digo a mim própria, talvez ainda um pouco pedrada da morfina. Vocês são seres inadaptados para os quais quero fazer espaço. Até alongava a mandíbula. Ainda não sei como. Um amigo meu comprou uma vez um alicate porque não parava de perder as chaves da bicicleta. Talvez me servisse. A evolução só quer aprender com crueldades. Não com um par de pílulas de morfina e um cirurgião-dentista brutamontes.
Mais 21 noites
Às oito e meia da manhã posso ir ao posto clínico. O meu médico está de folga. Um outro homem pressiona fortemente a minha bochecha, vêm-me novamente lágrimas aos olhos e desta vez também um líquido espesso à boca. O assistente põe-me uma bacia de cartão por baixo da boca para onde tenho de cuspir. Continua a carregar na minha bochecha com os polegares e, apesar do último comprimido de morfina, sinto uma dor fulminante. Porcaria acastanhada continua a sair da minha boca. Nem me atrevo a olhar para a bacia que está mais pesada agora. Munida de uma prescrição de antibióticos e de instruções sobre como eu própria posso eliminar o pus da minha bochecha, saio do local.
Nunca antes estive tão instável nas minhas pernas. Não tinha tomado o pequeno-almoço. Não consegue entrar pela frincha que a minha boca agora é. Na farmácia desmaio.
O dente do siso sente a minha falta. Não é nisso que penso enquanto estou deitada no chão. Quem desmaia, não pensa em nada, não está lá nada.
Quando volto a mim, não faço ideia de quanto tempo estive fora de mim. Podem ter sido alguns segundos, horas, talvez até meses. Desmaiar é o que imagino que acontece quando se morre. Ao acordar vejo umas cinco cabeças a planar por cima de mim. Todas com o mesmo ar preocupado.
O dente do siso sente a minha falta, penso quando estou finalmente deitada na minha própria cama. Engoli a primeira pílula de antibiótico. De meia em meia hora empurro o pus para fora da bochecha. O líquido escorre entre o molar e a gengiva para dentro da boca. Tão rápido quanto possível cuspo-o para dentro de um copo em cima da mesa de cabeceira. As horas passam lentamente. No Instagram as pessoas fazem um passeio a pé pela cidade passando por cinco restaurantes, fazem fotografias de comida em pratos de cartão. Pratos de cartão feitos do mesmo material que a bacia para cuspir do hospital. Outros tiram selfies com os seus bebés, às vezes o bebé agarra uma garrafa de cerveja. Quero ver tudo.
– Estás completamente atualizada – diz o Instagram.
No Twitter está toda a gente indignada. Ou não dizem nada, mas fazem um retweet e põem o comentário “Vejam isto!”
Mais 7 noites
Quando pergunto a um amigo quando é que a dor vai parar, ele diz que nem me vou aperceber, que um dia vou sair de casa e que, de repente, vou perceber que a dor desapareceu. Que já se passaram horas sem sentir dor sem eu reparar. É a isso que me agarro. Voltei a comer batatas fritas, embora tenha sempre medo que alguma coisa fique presa no buraco no fundo da boca. Depois de cada refeição, incluindo os snacks, agarro numa seringa, meto-a na boca, aponto a agulha para o sítio onde estava o dente de siso e lavo-o com um jato de água. Foi o que o assistente disse para eu fazer.
O dia depois da última noite
O amigo tinha razão. Desapareceu a dor, de repente deixei de sentir a sua presença. Já não consigo enfiar a agulha dentro do buraco. A gengiva fechou- se. No espelho vejo como se formou um rebordo cor-de-rosa suave e saudável. Foi colocada uma lápide sobre o sítio onde o dente do siso esteve. Um resíduo do paleolítico que eu teria preferido carregar comigo.