Reading platform


Welcome to our publication platform! You can browse and search for stories and samples from all our writers. Thanks to our translators, each story is available in Czech, Dutch, Italian, Polish, Portuguese, Romanian, Serbian, Slovene and Spanish. Throughout the years, this platform is becoming a growing archive of European literature by the future generation of literary artists. We're sharing stories beyond barriers.

Parêntesis

      Suponho que nem o que temos de mais fiável - os sentidos, isto é, o que vemos, ouvimos, aquilo de que nos apercebemos com o corpo - é fiável em situações como a morte de um pai, o nascimento de um filho ou estar prestes a  morrer atropelado. Agora, que já enterrámos o papá, e estou por fim sozinho com os meus pensamentos, constato que ontem, no tanatório, tal como há trinta anos atrás, o tempo parou.  Por uns segundos, sim. Mas aconteceu outra vez. E soube, imediatamente, que se tratava do mesmo fenómeno que vivi em criança.        Naquela noite também estava com o papá.        Aconteceu...
Translated from ES to PT by Matias Gomes
Written in ES by Mariana Torres

O final feliz

      Foi a chuva que me acordou. Meteu-se no meu sonho e no início eu não sabia de que mundo vinha. Eu a nadar na infinidade do Pacífico. Sei que era o Pacífico, conheço bem o Oceano Pacífico da televisão. Eu a nadar no turquesa e no cristal. É assim mesmo que dizem nas reportagens, turquesa e cristal. Na anca levava umas fitas que apertavam o fato de banho com umas continhas coloridas penduradas. Recordo-me dele das fotos, o meu primeiro fato de banho, ainda de menina. Enquanto eu fazia o nó, o céu abriu e deixou cair uma cortina de água. As gotas pesadas caíam na minha cabeça e nos meus bra...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Jasna Dimitrijević

Diário

21 de agosto       Chamo-me Erik Tlomm e este é o meu diário. Foi o psiquiatra que me recomendou escrever, supostamente para ter melhorias no tratamento. Contudo, para quem devo escrever? Para ele? Para a minha esposa Lina? Mas com certeza não lhe vai mostrar o que eu escrevi. Quando lhe perguntei, respondeu: «Escreva para si próprio.» Então, comprei uma caderneta de couro e eis-me aqui, sentado à secretária, a escrever-me um diário, sem conseguir afastar a sensação de escrever também para outra pessoa – mas para quem? 22 de agosto       Deixem-me explicar o meu primeiro registo no diário (...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Mirt Komel

Eu não era, mas agora sou. Sensível a qualquer mudança do tempo.

Lá do outro lado do canal levávamos na cara com o vento carregado de flocos de neve, mas depois de atravessar a ponte, já nesta margem, fica-se de costas ao vento, o que torna o processo todo um pouco mais agradável. Desta nova posição a paisagem pode ser contemplada com menos esforço, sem fechar os olhos. O canal ainda não está completamente congelado mas não tarda e o gelo fecha e cobre tudo, é questão de poucos dias. Não há nada a fazer. À primeira parecia ser uma miragem, mas logo se confirmou que havia lá, no meio do canal, um cisne a tentar passar abrindo sempre um caminho na superfície ...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Marija Pavlović

Torcidos

Naquela noite chamava-me, e não parecia que fosse parar. — Mamã. Mamã!  Dizia-o assim, oferecendo-o a mim e ao quarto enquanto se encolhia  numa escuridão de cera, cheia de brinquedos (a sua única propriedade).  Voltou a gritar-mo, com muito mais força, e então afastei o olhar e acariciei  o copo de uísque, mesmo debaixo da base, até que a humidade passou para  a ponta do dedo.  A palavra estava bem cosida ao seu cérebro desde bebé.  Fiquei muito quieta enquanto observava a forma brilhante e obsti nada da gota. Não era um crime deixar que aprendesse a sentir frio, ou  como tragá-lo. Imaginava ...
Translated from ES to PT by Matias Gomes
Written in ES by Matías Candeira

Apesar da primavera

      Sob a luz intensa duma lâmpada de néon da fraca qualidade, Mariana Gruić cuspia tentando limpar a lama das suas coxas. Ainda era jovem e ainda capaz de correr numa flecha até à entrada, nem sequer tinha que andar pelo caminho pavimentado, as sapatilhas gastas que tem dão-se bem com a terra e a poeira. Mariana refletia sobre a vida, ainda ontem pulava elástico, e já hoje o namorado beijou-a de língua e ela sentiu uma língua alheia, quente e áspera, a encher-lhe a boca. A vida vai mudando, dizia a avó de Mariana, a vida vai mudando sem parar, só que vai ficando sempre pior. Mariana Gruić a...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Ana Marija Grbic

Uma vida a meio

Casablanca, 1954 Ela filtra o ruído das crianças a brincar lá fora e todos os dias guarda alguns sons aos quais se agarra obstinadamente. Colhe os poucos sons que penetram através das paredes. Passados alguns meses já conhece os vizinhos todos, embora nunca saia do quarto. Sabe que estão sempre a aparecer credores em casa dos vizinhos do lado, mas não adianta porque o homem não quer pagar. «Nem que me arranquem primeiro os órgãos do corpo e me matem depois» é o que o ouve dizer à mulher depois de os credores saírem. Quando ouve estas coisas tem a sensação de ser um elo na história e nos segre...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Árvore Monstro Menino Árvore

Ainda não sabemos como Óscar comeu a semente, nem descobrimos de  onde a tirou. Temos ainda menos respostas para percebermos como pôde a  árvore crescer-lhe por dentro, germinar a semente sem qualquer  impedimento, disse o médico, na boca do seu estômago, regada somente  pelos sucos biliares do menino. É que aos sete anos, também nos disse o médico, os estômagos funcionam muito bem. O corpo do nosso Óscar —  ainda era o nosso Óscar então — permitiu que a árvore crescesse, que as  raízes se estendessem pelos intestinos e que o tronco se fosse distendendo  esguio, cerimonioso, ao longo do esófag...
Translated from ES to PT by Matias Gomes
Written in ES by Mariana Torres

Estação de tratamento

Vagueava defronte de um aglomerado de dormitórios do estaleiro, esfregando as suas mãos frias. Ao longe, dois corvos-marinhos cintilavam por cima do rio. Pouco depois, ela começou a olhar em todas as direções e a verificar a mensagem de texto que chegara ontem. “Olá Petra, ação ETAR amanhã às oito. Encontro frente à ponte junto do aglomerado. A.” Ela leu-o mais três vezes antes de a luz do visor se apagar. A antiga e a nova estação de tratamento que partilhavam os resíduos vindos de toda a cidade ficavam uma atrás da outra na ilha, tal como governadores do rio. Enquanto a mais antiga se ergui...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Anna Háblová

Natalya

Assim que soube que o problema era evasão fiscal liguei ao meu  contabilista  ó Zeferino, mas que porra é esta, tu explica-me lá que porra é esta,  disseste-me que tinhas tudo sob controlo, para ignorar as cartas das  finanças que tratavas de tudo, tu explica-me que porra é esta, e à Misé, a quem há apenas dois dias dera um anel de zircónio muito  decente,  temos de devolver a jóia, princesa, depois explico-te  lavei o bucho com dois calmantes e meia garrafa de vodka, estendi-me no  sofá e meti o portátil no chão a vomitar folhas de Excel para que, na  eventualidade de alguém chegar, a minha i...
Written in PT by Valério Romão

Todos os bichos do campo

Como era habitual, naquela manhã acordou com fome. Os grasnidos dos patos que sobrevoavam o telhado ressoaram nas paredes do dormitório e a miúda sentou-se na cama. Os patos tinham chegado a casa da sua avó vindos de longe, talvez de outro continente, agitando as suas asas. De um dia para o outro, tinha deixado de ir à escola e mandaram-na para ali, com a sua avó, que vivia junto a um lago, a quilómetros da aldeia mais próxima. Ela não interessava a ninguém. Os seus pais procuravam intimidade, ou estavam a trabalhar, lá na cidade, não sabia bem. Aquilo de que não duvidava era dos tremores do s...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Ponto de fuga

Trata-se da história de um homem que não quer perder o caminho para  casa. Ele é feito de massa de pão. Parte de casa. À medida que vai  caminhando, retira uma migalha de si próprio e deixa-a cair no chão.  Começa por retirar um dos braços. De seguida, as orelhas. O nariz. Mais  tarde, arranca uma parte da barriga, surgindo um buraco. Na cena  seguinte, olhamos através do buraco da barriga do homem. Através do  buraco da barriga dá para ver, à distância, uma casa pequena. Atrás da  janela, vê-se uma mulher idosa à mesa. A mulher encontra-se a amassar  massa de pão. Música comovente. Fim.  Trat...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Maud Vanhauwaert

Mesmo Que apenas Uma só Gota Possa Ser Vista

The white cracker who wrote the national anthem knew what he was doing. He set the world “free” to a note so high nobody can reach it. That was deliberate. Angels in America,   Tony Kushner O meu pai e eu íamos a caminho do aeroporto. Eu ia passar um mês aos  Estados Unidos e ele fazia questão de se despedir de mim lá.  Ia a Charleston, uma pequena cidade no litoral da Carolina do Sul.  O meu pai perguntou-me como é que a cidade era, e eu apercebi-me,  nessa altura, de que não tinha ido à procura de quaisquer imagens no  Google. A única coisa que sabia é que tinha havido um tiroteio na cave ...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Rebekka de Wit

O reencontro

Já chega. Arrumei as malas, o fato na capa, a calçadeira de sapatos e entreguei a chave. Até casa tenho de conduzir durante seis horas, mas o caminho de regresso é mais curto. Abri a janela e, com a cabeça de fora, atravesso cada vez mais rápido a avenida principal da cidade. No fresco da noite e da velocidade, o ar corta-me a face e isso recorda-me a aspereza da esponja desmaquilhante. Tenho uma tez sensível e não suporto com facilidade o tratamento que os apresentadores do noticiário têm de fazer para não se parecerem com uma lua cheia de brilho – é-lhes aplicada uma camada de base em pó, qu...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Alexandru Potcoavă

Alguns meses mais tarde

12 de agosto  «Mohamad, daqui a meia hora, esteja perto do telefone. Acho que a encontrei!» Salto da cama num empurrão, visto-me abstraído o mais rápido possível e saio da pensão. Rápido. Como se fosse diferente chegar a casa cinco minutos mais cedo ou mais tarde. Quase corro, descendo a ladeira na direção do porto, ali entre o bairro judeu de Hardara Carmel e o outrora palestiniano de Wadi Salib. Porém, ouço a serra que provavelmente corta o ferro e as galinhas e os galos. Incrível. O cheiro a fazenda no meio da cidade que quer apagar a sua história e ser moderna. Como se regressasse ao ano...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Andraž Rožman

Very Important Person

Mais uma vez, passei o dia inteiro a olhar fixamente para os números luminosos por cima do elevador: 8… 7… 6… 5… 4… 3… 2… 1… “Bom dia, senhor Seljak.” Cumprimento-o sempre, uma vez que sou um profissional. Responde-me com silêncio, ele também o é. Quando tenho sorte, um vinco resplandece no seu rosto de pedra. Se tem um bom dia, levanta a sobrancelha direita, como se me quisesse dizer: “Eu sei quem és tu, mas os meus pensamentos são de diretor.”   Quantas vezes disse a mim mesmo que ia deixá-lo em paz. Que não iria fazer caso dele, como ele não faz caso de mim. Mas a minha mãe ensinou-me a ser...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Andraž Rožman

Outra Cidade

Outra cidade Amesterdão no limiar do outono era colorida e caprichosa. O sol alternava-se com a chuva, e isso repetia-se uma e outra vez tal como Ave-Marias num rosário. Encontrava-me debaixo da ponte, esperando até que um dos breves aguaceiros parasse. Tinha planeado uma viagem de bicicleta pelos arredores de Amesterdão. Quis ver aqueles famosos pólderes - canais de água que cruzam os prados verdejantes dominados por moinhos de vento que esticam os seus braços, feito uns espantalhos no campo. Era suposto ser a minha primeira viagem na nova cidade. A primeira experiência que de alguma forma i...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Anna Háblová

Linguado

Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem. No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar. Ninguém dirá «72 segundos!» É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios. Estou sentada no fundo da piscina e olho para ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker

Francamente querida, tanto me faz

O Marek faz-me cair na cama e pelo seu rosto passa-se algo que combinado com o seu aperto, me faz perder completamente a orientação, como se a nossa cama fosse uma avalanche em que ele me afundou e eu esquecia onde é em cima e onde é em baixo. Tudo isto dura apenas um segundo, esse aperto e essa sua expressão, no momento seguinte saca-me da avalanche, e ainda que eu permaneça na posição horizontal, já me é perfeitamente claro onde é em cima e onde é em baixo. E só agora atinjo, mas mesmo assim apenas em contornos, agora me apercebo dessa ideia, que dispara pela minha cabeça como se alguém acen...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Lucie Faulerová

Está tudo bem

Ela leva a sua máquina de café consigo. Ela não sabe quem é. No entanto, sabe, sim, que é uma mulher com uma máquina de café expresso da marca De’Longhi Magnifica S ECAM20.110.B totalmente automática. Preta e cinzenta. Porque já não sabe mais nada, todos os pormenores são importantes. De manhã, assim que a máquina começa a moer os grãos de café com o seu ruído infernal, ela fica logo acordada – e os vizinhos também. Comprou a máquina em segunda mão no Coolblue e, durante quatro dias, passou as manhãs à espera dela, junto à janela. Ao mesmo tempo que fazia no site, de cinco em cinco minutos,...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi