View Colofon
Translations
Published in edition #1 2017-2019

Natalya

Written in PT by Valério Romão

Assim que soube que o problema era evasão fiscal liguei ao meu  contabilista 
ó Zeferino, mas que porra é esta, tu explica-me lá que porra é esta,  disseste-me que tinhas tudo sob controlo, para ignorar as cartas das  finanças que tratavas de tudo, tu explica-me que porra é esta, e à Misé, a quem há apenas dois dias dera um anel de zircónio muito  decente, 
temos de devolver a jóia, princesa, depois explico-te 
lavei o bucho com dois calmantes e meia garrafa de vodka, estendi-me no  sofá e meti o portátil no chão a vomitar folhas de Excel para que, na  eventualidade de alguém chegar, a minha interrupção de realidade passasse  apenas pelo cansaço inevitável que acomete até os mais labutadores. Foram horas de sono polvilhado de imagens perturbadoras, a miúda a ver o  pai ser algemado e escoltado até ao carro da PJ, no qual cuidavam de me  proteger a cabeça à entrada para evitar que os pudesse processar por maus tratos, como nos filmes, e a Misé tentando conter um choro incessante nos  braços de um inspector mais propenso ao consolo daqueles que ficam, a  sentença sumária sem possibilidade de recurso, que com o IVA não se brinca, 
esperávamos que com a sua idade e história contributiva soubesse  disso, senhor Fonseca, 
e eu a sacudir do capota a água com muitos nomes: 
foi o contabilista, lhe garanto, e o director financeiro há-de ter tido  parte nisto, que um homem na minha posição tenta apenas traçar um  caminho de futuro para a empresa, não se mete nas folhas de cálculo da  vida para tentar sacar uns trocos ao estado, não consegue, não tem tempo,  mas o veredicto é rápido e isento de quaisquer espinhas de dúvida,  culpado, mínimo cinco anos — com bom comportamento — e a vida ou o  que dela resta esboroa-se sem complacência apesar do discurso do  empreendedor que semeou empregos pela comunidade. 
Acordei com a vozinha da Natalya a dar-me um responso o sénhior sábie que a dotora não gosta qui o sénhior dúrmia áquie,  não sábie, avinagrado pela caldeirada de luzes a trespassar-me as pálpebras,  reticentes à vontade de desapertarem o abraço, e com a Natalya a passear o  aspirador repetidamente à volta da minha cabeça como se não houvesse  sala e pó além daqueles três metros quadrados à volta do sofá, eu, bilioso, tens visto a Crimeia, Natalya, aquela confusão, aquela vergonha,  Natalya, ou ainda estás demasiado ocupada com aquele teu projecto de  compendiares em registo de esquisso todas as pichas dos Olivias, que eu já vi esse caderno, Natalya, um Moleskine dos chineses que a  Maria Leonor me trouxe na ponta dos dedos, tremelica,

quorror, quorror, tu já me viste isto 
a mão esquerda a tapar o sarcófago da boca 
são só pichas, Leonor, são só pichas 
mas têm nomes e idades, Zé, olha aqui por baixo 
a apontar para os teus gatafunhos em cirílico 
todas as pichas têm nome, Leonor, e não temos nada a ver com a  vida privada da miúda 
mas tu achas que ela já viu esta gente toda 
ela tem idade para já ter visto muita coisa, Leonor, vai masé pôr isso  onde o encontraste quainda apanhas uma doença 
ai que tens razão, quorror 
e lá foi ela calçar umas luvas salmão de lavar bidés para voltar a meter-te  na mochila o compêndio anatómico das tuas aventuras por terras lusas,  Natalya, já viste se tivessem sido os miúdos a apanhar-te isso, as perguntas  que não te fariam quando os fosses meter na cama, Natalya, esquece as  princesas mágicas e o coelho da Alice, as crianças são crianças, têm o arrojo  de quem come com os cotovelos na mesa e em menos de nada te  rebentavam essa couraça de anjo que lhes emprestaste aos olhos a troco de  beijinhos e de os velares noites afora, saramposos ou constipados, na  educação a gente só precisa falhar uma vez, Natalya, meia vez apenas, se  quisermos ser correctos, 
tu achas que a gente a deve manter, Zé, uma miúda com esta idade e   já tão rodada 
e eu, deitado, a ler um mau livro e a fingir que é tudo normal, Natalya,  toda a gente a dormir com toda a gente, numa orgia de coelheira o importante é que a miúda é trabalhadora, Leonor, e além disso as  crianças adoram-na por isso, mesmo, Zé, já viste se os miúdos descobrem, o choque que  não vai ser, já pensaste nisso 
a argumentar contra mim próprio — tanta picha, Natalya, uma floresta  infindável de manguitos — apenas para contrariar os assomos puritanos da  doutora 
os miúdos nesta idade já sabem tudo o que têm a saber, Leonor, não  vamos fazer disto um drama 
e a pensar porque me recusaste até a magreza de um broche o sénhior meita isso pra dientro, dôtor, meita isso pra dentro ou eu  contio à dotora 
eu que de bom-grado largava já a Misé, duas vezes mais velha que tu  e não sei quantas vezes mais cara, se me deixasses levar-te, semana sim  semana não, a comer um gelado pós-coital, num hotel do Estoril de onde se  vê um mar que nos faz ainda mais pequenos do que já o somos

ela nunca mais trouxe aquele caderno nojento, que eu revisto-lhe a  mala todos os dias, mas mesmo assim 
nada que tu tenhas na terrinha de onde fugiste, Natalya, aquele  enclave entre um lago empestado de fragatas russas e o brilho compósito  das crianças de Chernobyl 
ó Zé, e se ela também lhes tira fotografias com o telemóvel e nem imaginas como estiveste perto de lá regressar, directa daqui  para a Portela e da Portela para Kiev, num Tupolev pintado a trincha, não  tivesse convencido a Leonor de que seria impossível distinguir uma picha  de um acidente de carro numa fotografia que tirasses, por causa da  resolução do teu telemóvel rupestre com um ecrã do tamanho de um selo,  mas ela 
podes até ter toda a razão do mundo, mas não estou descansada. Quando do tribunal nascer lavrada uma declaração de insolvência, terá  deixado de haver há muito tempo cavalos aos domingos, festas de  aniversário temáticas e a segurança aristocrática do colégio privado. A mão  enorme do arresto de bens não se esquecerá de gatafunhar onde nem a  Maria José se conseguirá lembrar de ter escondido a última das jóias de  família. A casa será invadida por uma trupe de angolanos que postarão no  Facebook as fotografias da melhor vista sobre a cidade até ao liminar fastio.  Tudo o que temos agora viverá para sempre por detrás de qualquer porta  fechada, numa arritmia de espectro. 
Deixa-me contar-te da minha casa num monte alentejano, Natalya. De  como poderíamos ir para lá juntos, cada qual a fugir do seu inferno muito  próprio, e eu era capaz de juntar uns trocos que nos durassem até mesmo  depois da minha morte, se nos convertêssemos ao mantra da simplicidade,  tu e eu e aquele teu caderno onde incipientemente desenhas em negativo  especular a carne mais sozinha do mundo. Não te garanto que  desenhássemos todos os dias ou com tanto afinco, Natalya, e sobretudo  com tanta variedade temática. A custo conseguiria compreender um  embeiçamento casual pelo rapaz da tua idade que fizesse a entrega do pão, e  terias de mim a certeza de uma anatomia pronta a corresponder ao teu desejo como só um corpo inteiro e justo o pode fazer, Natalya, e o mais  perto a que chegarias da ruidosa implosão ucraniana seria pelas manchetes  dos jornais, que em caso algum compraríamos.

More by Valério Romão

Para não Te Ver

Já sabes que levei os miúdos, as roupas, as coisas do banho, a comida  biológica dividida em pequenas porções dentro de tupperwares de cores  berrantes como as da Benetton, levei também os livros deles, porque de  noite é só pela leitura que consigo convocar o sono do Rogério, e não raras  vezes ele acorda horas depois com um pesadelo a esganar-lhe a maçã-de adão, e eu abraço-o, como te abraçava, Rita, quando fazíamos um ninho  tão perfeito que quem nos visse de cima poderia facilmente confundir-nos  com um daqueles símbolos chineses a preto-e-branco onde se vêem  explicados a imortalidade e o...
Written in PT by Valério Romão

A aprendizagem

Quando construí o primeiro, pensei ter criado uma obra-prima. Como um pintor a terminar o quadro inaugural da sua carreira, que renegará com a mesma veemência com que o perfilhou originalmente. Fi-lo à minha imagem e semelhança e, quando lhe vi vida nos olhos pela primeira vez, foi como se me olhasse ao espelho. Apenas pela dessincronia do reflexo desfiz o equívoco. Não fui módico nas habilidades que lhe dispensei: força, agilidade, espírito combativo, uma extraordinária capacidade estratégica. Ainda assim, levei apenas dez minutos a derrotá-lo. Parecia estar a lutar com uma criança amblíope e...
Written in PT by Valério Romão
More in PT

Perguntem ao Relâmpago

Não era a minha intenção causar um burburinho. Mas de repente assim  foi. Falei na escola sobre o acidente de viação e uma coisa levou à outra. Estava pela ponta dos cabelos com os exames, de maneira que nunca  conseguia acordar a horas, embora me propusesse sempre na véspera de  cada prova a folhear atentamente tudo aquilo que ainda não tinha  aprendido. Depois do bipe irritante do despertador da minha mãe, que  tinha de estar bem mais cedo no emprego, voltava sempre a cair num sono  profundo, tão profundo que mal ouvia o meu próprio alarme. O meu pai  vinha-me então tirar do ninho mesmo a te...
Translated from NL to PT by Xénon Cruz
Written in NL by Carmien Michels

PISK

Dia 28 de novembro de 2020, um mês depois do dia em que o politizado Tribunal Constitucional tornou o aborto ilegal na Polónia. Magda Dropek, uma das organizadoras dos protestos feministas em Cracóvia, escreveu no Facebook: “Durante estes anos em que apoiei as ações nas ruas tive a certeza de uma coisa: que não consigo gritar e clamar, que sou demasiado caótica para falar de maneira rápida e lógica, por isso, sempre me senti bem em transferir o que penso para o papel ou para o ecrã, escrever, comunicar sem usar a voz. Ainda por cima, a minha voz, detesto-a. Nas últimas semanas gritei como nun...
Translated from PL to PT by Katarzyna Ulma Lechner
Written in PL by Aleksandra Lipczak

Sobre os corcéis e os demónios

Recordo o dia de ontem como se fosse ontem. Em Bruxelas, apanhei um comboio – aliás, dois, porque tive de mudar para a correspondência – para Haia só para ver uma única pintura.     O demónio obcecou-me com um desejo obsessivo, pelo que simplesmente tive de ir.      Mas a viagem estava longe de ser o que eu imaginava, o que confirmei quase imediatamente depois de sair do hotel, então deixei tudo e todos para trás.      Na estação de comboios de Bruxelas, Gare du Nord, quase embarquei num comboio errado porque sincronizei-me com o horário da Gare Central, de modo que, em vez de comprar o bilhet...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Mirt Komel

Dicionário do Recluso

O Dicionário do Recluso encerra as vozes e as histórias de homens que se encontram detidos na cadeia de Turim, Estabelecimento Prisional Lorusso e Cutugno, Ala V do Pavilhão C, destinada aos “presos protegidos”. Nasce de um laboratório de escrita realizado no interior da prisão durante dois anos. Todos nós sabemos o que querem dizer “casa”, “inverno”, “amor”, e o seu significado é absoluto. Mas na cadeia o significado das palavras muda, e essa mudança nasce do espaço: lá dentro só existe o dentro, e as palavras tornam-se pré-históricas. Quer isto dizer que é como se estivessem paradas num tem...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Sara Micello

Francamente querida, tanto me faz

O Marek faz-me cair na cama e pelo seu rosto passa-se algo que combinado com o seu aperto, me faz perder completamente a orientação, como se a nossa cama fosse uma avalanche em que ele me afundou e eu esquecia onde é em cima e onde é em baixo. Tudo isto dura apenas um segundo, esse aperto e essa sua expressão, no momento seguinte saca-me da avalanche, e ainda que eu permaneça na posição horizontal, já me é perfeitamente claro onde é em cima e onde é em baixo. E só agora atinjo, mas mesmo assim apenas em contornos, agora me apercebo dessa ideia, que dispara pela minha cabeça como se alguém acen...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Lucie Faulerová

Os Meninos Escritores

Quase tudo o que aconteceu nesse dia passa-se aqui. Estou com o indicador  apontado à cabeça. Muitos anos depois, enquanto levo o meu filho a  descobrir o gelo, ainda recordo todos os acontecimentos daquele único dia  como «o fuzilamento».  Ninguém morreu. As pessoas eram perigosas, especialmente as  crianças pequenas, penduradas nas árvores. Os pés a balançar — e era da  língua no meio da boca que viriam os piores crimes.   Ouvir dói, caminhar é um truque. Caminhemos.   Mesmo os pequenos ditadores envelhecem. Os filhos coabitam a  terra com os pais, há milhões, talvez milhares de anos. Imagin...
Written in PT by José Gardeazabal