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Original text "Tornando a casa" written in IT by Fabrizio Allione,
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Mentor

Paola D’ Agostino

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

De regresso a casa

Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Fabrizio Allione

Quando voltam a entrar no carro, deixando a cidade, ele tenta desdramatizar dizendo que foi uma daquelas situações impossíveis, que designa por Que-farias-tu-se?

Ela anui. — Essas situações não são o teu forte — comenta.

— O que é que queres dizer com isso? Não sei que porra mais deveria ter feito?

— Não digas asneiras. O Matteo repete tudo o que tu dizes.

Alice dá uma espreitadela atrás de si. Matteo vai derreado na cadeirinha.

— Podes dizer-me o que fiz de mal? — pergunta ele passado algum tempo.

— Davide, perdeste as estribeiras, desataste aos murros ao vidro. Se não tivesse sido eu, ainda lá estarias a dar cabo das mãos.


Nessa tarde, tinham ido ver uma casa ao centro, decididos a comprar um T0. Andavam havia anos a ouvir os amigos falar de investimentos, projetos, futuro: todas essas conversas que, a dada altura, as famílias maduras começam a ter. Viam-nos ir ao banco e obter financiamentos, pedir aumentos de salário, tratar os chefes e os diretores de igual para igual; competentes, seguros. Daí que também eles, espicaçados pelo facto de serem o casal com maior longevidade, ainda que fosse contra a sua natureza, tivessem começado a pensar no assunto, sobretudo após o nascimento de Matteo. Tinham herdado a casa em que viviam e, sem poderem entrar em aventuras, tinham pensado que esse seria o melhor investimento: comprar um pequeno T0 na cidade, pô-lo em nome de Matteo, reabilitá-lo e arrendá-los a estudantes universitários.

Era a terceira vez que iam ver o apartamento na esquina da pequena travessa de Corso Vittorio. Encaixava no orçamento e não precisava de muitas obras. Alice, contudo, não estava completamente convencida. Não com certeza pela luz, aliás, era até mais luminoso do que a casa de ambos; nem sequer pelo espaço, mais do que suficiente para o que lhes convinha; muito menos pela localização, dado que o bairro era do seu agrado. Acabara, pois, por se agarrar a desculpas estúpidas, que tinha dificuldade em defender.

— Por aquele preço não encontraremos nada melhor.

— Pois — replicara ela. — Naquelas condições.

— Já chega dessa história da alcatifa.

— Não sabes o que iremos lá encontrar, quando a arrancarmos.

Alice rendera-se por fim e, nessa tarde, tinham assinado o contrato-promessa.


— Tu é que tiveste a ideia de vir de metro — continua ele no carro.

— Estás a gozar, não estás? — Alice abana a cabeça, irritada. Depois, assume aquela pose teatral que Davide conhece perfeitamente. — Estás a atribuir-me as culpas? — acrescenta.

— Não foi isso que eu disse, não vás por aí. Mas não me venhas dizer o que eu deveria ter feito.

— Ele estava contigo, tinhas-lhe dado a mão.

— Não lhe tinha dado a mão coisa nenhuma!

— Estava contigo ou não estava?

Davide vira-se e olha Alice nos olhos: só olhar para ela. Um gesto natural, sem subentender mais nada. Retoma a sequência na sua cabeça. Sente-se ainda muito confuso. Lembra-se da mão de Matteo agarrada às suas calças, ela com os sacos a trocar mensagens no telemóvel. Depois as portas fecham-se, vira-se e Matteo já não está lá.

— Alice: o metro estava a arrancar, tinha de me segurar. Além de que o Matteo nunca fez nada assim, não estava à espera.
— Davide, ele tem três anos! Podia ter ido parar debaixo de um carro. Podiam tê-lo raptado.

Meses antes, embora pudesse ter sido havia mais tempo, Alice calhara a entrar por acaso numa loja de móveis orientais. Atraíra-a uma estante baixa, com cores curiosas, exposta na montra, perfeita para o quarto de Matteo. Uma vez lá dentro, cativara a sua atenção uma tigela envolta no que, à primeira vista, lhe parecera uma teia de ouro; na realidade, era um velho vaso de barro partido, reparado com a técnica do kintsugi.

Comprara-a e demorara-se a dar-lhe voltas na mão. Explorara com as pontas dos dedos o metal brunido, a curiosa, undívaga disposição das fraturas; imaginara o momento da rutura: um gesto distraído, provavelmente. Interrogava-se se aquela sutura não impediria que outra coisa qualquer, porventura mais necessária, passasse através dessas fraturas. Perscrutava, sentia um movimento no ouro, quase como se ainda estivesse vivo. Teve a sensação de que dentro da tigela, debaixo da sua pele, estava a alastrar uma forma resplandecente de micose, não menos perigosa do que as restantes.


— Já percebi — recomeça ele, sarcástico, aproveitando um semáforo vermelho. — Queres que te batam palmas porque foste tu a reencontrá-lo, certo?

— Mas isto é uma competição para ti? É isso que para ti significa sermos pais?

— Repara, não só poderás contar que nos arriscámos a perder o nosso filho porque o teu marido é um imbecil como o facto de o termos reencontrado é além disso mérito teu.

— Basta-me que ele esteja vivo, que esteja bem.

— Alice, a supermãe.

— Não sejas infantil. Concentra-te a conduzir.

Davide abranda porque tem uma carrinha a virar à sua frente. Verifica no espelho retrovisor e ultrapassa-a. As caudas dos cavalos, despontando das grades da carrinha, desfilam rapidamente ao lado deles.

— Além de que, para ser sincero, foste tu que não quiseste comprar-lhe aquele carro. Se o tivéssemos comprado, ele não teria fugido.

— Davide, já falámos disso: não podes comprar o amor dele.

— Nunca fiz isso. Sei que não é preciso.

— Não sabes, não, porque não é aquilo que te ensinaram.


Ela e Davide tinham-se conhecido dezassete anos antes. Em breve, teriam vivido mais tempo juntos do que sozinhos. Possuíam quase tudo um do outro: pensamentos, segredos, traumas, desejos, receios. Tinham apurado, tinham descoberto em conjunto, sem sequer o dizerem, que mesmo duas ou três coisas que não funcionam têm mais peso do que qualquer outra coisa que, pelo contrário, parece perfeita. Acontece, por vezes, trocar-se a segurança, o quotidiano de um amor por um subtil, quase transparente, controlo simbiótico um do outro.


Antes de saírem da autoestrada, passam pela estação de serviço para ir buscar pizza. Enquanto Alice espera por Davide no carro, repara num grupo de rapazes que estão sentados do outro lado do estacionamento junto das suas scooters. Bebem, fumam e, enquanto isso, filmam com os telemóveis um cachorro que vai perseguindo uma garrafa de cerveja vazia. O barulho da garrafa a rebolar chega ao habitáculo como um queixume. Confunde-se com a música do vídeo idiota que Matteo está a ver no seu telemóvel, sentado ao colo. O calor de ambos, que se deposita lentamente no vidro, esbate os rapazes em formas grosseiras. No ecrã da janela embaciada não sobram senão os pirilampos fracos dos seus cigarros acesos.

Alice passa uma mão pelo vidro, preocupada com o cão.

Um rapaz dá um pontapé um pouco mais forte na garrafa. Ela bate contra o poste que segura o caixote do lixo e parte-se em mil pedaços. O cachorro assusta-se e põe-se a ganir.

Alice sufoca um resmungo na garganta e dá um murro na porta. — Parvalhões.

Parvalhões? — macaqueia Matteo.

Ela percebe que falou numa voz demasiado alta.

— Olha lá, fofo, prometes-me que não voltas a fugir? — tenta desviar a conversa.

Matteo continua hipnotizado por um vídeo idiota de um tipo a dar de comer a dinossauros.

— Hoje, quando fugiste do metro. Não voltas a fazer isso, pois não?

— Só queria ver o carrinho.

— Queres assim tanto o carrinho?

— Sim. Muito.

— Então a mamã vai comprar-te.

Matteo levanta o olhar do ecrã e esboça um sorriso exagerado, de banda desenhada. — És tão querida, mamã.

Ela ri-se. Afunda o rosto entre os cabelos do filho, cheira-os. — Mas não digas nada ao papá, tem de ficar um segredo entre nós.

Quando tornam a arrancar e percorrem o último troço de estrada até casa, o vapor que se desprende das caixas das pizzas — que Alice leva sobre as pernas — transforma os vidros do carro em paredes leitosas.


— Sentes-te bem a continuar assim?

Davide, como se estivesse a tentar apanhar um inseto incomodativo perto da orelha, agarra-lhe o pulso; depois, estica a perna e, com o pé, arpoa a caixa aberta da pizza que está no chão. Pega num dos pedaços que tinham deixado. No rebordo, os sinais de uma trinca distraída. A côdea da pizza fria está tão gomosa que Davide tem a sensação de estar a arrancar os nervos de uma costelinha de porco à dentada. Os seus maxilares fazem o barulho de um carro de combate a avançar com as lagartas rachadas.

— Correu tudo bem, não correu? — responde-lhe, assim que engole o bocado de pizza.

Ela sente as lágrimas a brotarem, mas não têm força para vencer a raiva que as refreia.

— O que aconteceu hoje não tem nada a ver, Davide.

Ele larga-lhe o pulso e levanta-se. Olha para as próprias pernas, os pés descalços. Está só ligeiramente tocado com as cervejas, uma ou outra a mais. Dirige-se ao frigorífico tendo o cuidado de não pisar os brinquedos abandonados no chão. Tropeça na cabeça solta de Buzz Lightyear. Estão lá umas quantas pousadas, as meias de Matteo sujas de gelado.

Davide abre o frigorífico sem fazer ideia do que está à procura. Vê as aboborinhas mirradas, um frasco de molho já passado com uma película de bolor à superfície, o tupperware cor de laranja com o assado que a sua mãe preparara para Matteo. Tira o pacote de leite, abana-o. Abre-o e cheira: ainda dá para beber.

A caminho do sofá, passa ao lado de Alice. Ainda está sentada no chão, de pernas esticadas. — Não podemos ser felizes assim?

O toque do telemóvel de Davide sobressalta os corpos de ambos como lebres surpreendidas por faróis acesos de repente na escuridão. Ele põe o pé em cima dos cornos de um tricerátops e perde o equilíbrio. Entorna o leite em cima de si. Sente o líquido a escorrer pelas pernas, a ensopar as cuecas.

Ergue o olhar na direção dela. Vê-a a rir.


Quando acorda, está noite cerrada. Rodeia-a um silêncio alquebrado. Sente na boca o hálito pastoso. Apetecia-lhe lavar os dentes para eliminar aquela capa adocicada que lhe cobre a língua, mas não tem forças para tal.

Procura na mesa de cabeceira o telemóvel para ver as horas, mas não o encontra. Talvez se tenha esquecido dele na cozinha, talvez na casa de banho, não tem a certeza. Sente a coxa húmida. Apalpa os lençóis e em seguida o pijama de Matteo, adormecido entre si e Davide. Fez outra vez xixi. Lembra-se de ter pedido a Davide, antes de irem para a cama, que lhe pusesse a fralda, só para dormir. Nos últimos dois, três meses, desde que terminou o desfralde, tornou-se um fenómeno recorrente. Está convencida, embora não o tivesse partilhado com ninguém, de que aquelas enureses noturnas são a confirmação de que Matteo compreendeu algo que eles ignoram ainda, e que não tem outra forma de o exprimir.

Distrai-a o barulho de uma mota a cruzar quase enlouquecida os campos narcotizados. Pergunta-se quem poderá ter tanta pressa àquela hora.

Depois levanta-se delicadamente, com cuidado para não acordar ninguém. Davide está a dormir de barriga para baixo, com a cara virada para a porta.

Alice sai do quarto, vai à sala e atravessa os restos do dia ainda espalhados pelo chão. Não encontra o seu telemóvel, mas, tombado no sofá, vê o de Davide. Pega nele para consultar as horas e vê no ecrã o pop-up com uma breve mensagem. É o agente imobiliário: Oferta aceite. Parabéns! Seguido do emoticon de uma garrafa de espumante. Assim que acaba de ler, incapaz de dizer o que está a sentir, voltam-lhe ao pensamento as mãos do velho proprietário do T0: pensos nos nós dos dedos, a pele descamada e avermelhada nas falanges, e aquele dedal, de silicone ou algo assim, à volta do polegar. Quando embirrava com a alcatifa, talvez não estivesse a exagerar. Sabe-se lá o que se esconde lá debaixo, pensa.

Apoia o telemóvel no braço do sofá e deita-se. Continua sem sono. Por mais que tenham discutido o assunto, sabe que ainda está lá, no metro. Paralisada, como diria a sua psicoterapeuta. Percorre de novo, na memória, a sequência: um instante antes, Matteo está agarrado às calças de Davide, estão ambos de pé, no meio da carruagem; no instante seguinte, quando volta a levantar o queixo, Matteo está do outro lado das portas já fechadas a correr sozinho para as escadas rolantes, enquanto eles são arrastados dali para fora pelo metro que está a partir. Depois, Davide atira-se contra a porta e põe-se a dar-lhe pontapés e murros; o resto da carruagem e aquele terror que, subitamente, aproxima toda a gente.

Sente de novo, na sua lembrança, aquele aperto, aquele safanão. Há algo mais forte ainda, mas envergonha-se disso: tenta em vão suprimir a sensação de liberdade que experimentara ao sentir-se a ser levada à deriva.

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