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Original text "SKOROSMRTNICA" written in SR by Ana Marija Grbic,
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Paulo Capinha

Mentor

Dejan Tiago-Stankovic

Published in edition #2 2019-2023

A Aguardente que mata

Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Ana Marija Grbic

DE LIVRO DE CONTOS: A AGUARDENTE QUE MATA

DISCLAIMER: Os seguintes excertos são de um livro de contos composto por seis ciclos (Uma notícia incomum, As aves não sobrevoam os subúrbios, Os esboços do minibus, A aguardente que mata, Pela boca, Fizeram bem em bombardear-nos). Cada um dos ciclos contém cinco contos. Os contos condensam os protagonistas e os acontecimentos, e entrelaçam-se entre si no espaço. 


CICLO AS AVES NÃO SOBREVOAM OS SUBÚRBIOS

    As Casas da cultura nas terras pequenas foram todas convertidas em lojas. Em frente delas há sempre três ou quatro homens de chinelos abibas de borracha a beber cerveja. Um deles diz que os políticos são todos uma merda, outro pragueja, o terceiro cospe no chão, e o quarto, se houver um quarto, está silenciosamente a pisar e a partir a ponta duma coisa que já foi algeroz. Numa companhia dessas é muito improvável encontrar Jovan Vokanović, um filho único das boas famílias de Desimirovac, quase licenciado universitário, com interesses requintados e as férias de verão passadas na costa grega. Jovan não gasta nesta loja cheia de produtos nacionais da classe C, aliás, ele fica repugnado com muitas coisas por ali, mas a que acha pior de todas, é uma cestinha com ovos cagados mesmo ao pé da caixa registadora. Por hábito ele vai à cidade para abastecer-se dos produtos da qualidade de fabrico alemão e francês, dos quais ele como um economista quase formado é bastante entendedor. Apenas quando tem muita preguiça chega a permitir-se sujeitar-se a passar por aquelas prateleiras sujas. Seria ainda mais fácil para Jovan se não tivesse de se encontrar com a funcionária da caixa de nome Jagoda Velikić, alta como a cruz em frente da igreja de Desimirovac, negra como a escuridão repulsiva do inverno. Os dentes da Jagoda, agora amarelos e pretos de podridão, foram os primeiros que a língua de Jovan Vokanović alguma vez tocou, e curiosamente, sempre que ela lhe manda um olhar, fá-lo lembrar-se daquela noite no Salão de bilhar e sentir um calafrio da própria ideia que podia ter ficado com ela e beijá-la agora nessa boca cheia dos dentes pútridos. Foi precisamente assim, Essa boca cheia dos dentes pútridos, que a descreveu a si próprio enquanto tentava descolar uma nota de vinte da outra, sempre com olhos postos mais nos ovos cagados do que nos olhos de Jagoda Velikić, uma senhora invulgarmente triste. O olhar dela todos os dias saltitava alegremente pela loja e brilhava ao ouvir piadas insossas e umas mais picantes, mas nos momentos quando Jovan entrava na loja, os olhos dela acalmavam-se e o olhar caia no chão. Aliás, Jagoda tinha certeza que podia sentir o cheiro de gasolina do carro de Jovan, que podia pressentir a sua entrada na loja pelo som do seu estacionar, e, ainda pior, nem sequer depois de toda essa falta de atenção e desdém, ela conseguia estrangular a borboleta que tinha no meio dos seus ovários e que, sempre que o via, machucava as entranhas de Jagoda com as suas asas duras. Pois, ela pressentia que em qualquer momento Jovan podia levantar o olhar, pegá-la pela mão e dizer-lhe Jagoda, eu quero casar contigo. Mas Jovan nunca vai casar com Jagoda. Ele vai viver até os seus quarenta anos à custa dos seus pais, altura em que vai encontrar uma mulher de vinte e poucos e vai abrir-lhe um salão de cabeleireira, dar-lhe dois filhos, um gordo e outro bonito como ela, e encorná-la esporadicamente com a sua melhor amiga, aquela que faz profiteroles altos. O que Jagoda não entende ao tentar a missão impossível de descolar a fita adesiva do balcão, o que não consegue entender ao arrumar, toda organizadinha, os pães na prateleira enquanto uma lagrimazinha salgada de deceção desliza pela sua bochecha, é que em toda a vida de Jovan Vokanović, a partir desse momento em que ele lhe pousou os vinte dinares em frente da mão, até ao momento da sua morte de cirrose, é que em toda essa vida não haverá um único momento cuja força de emoção possa medir-se com a piada mais vulgar do dia a dia da Jagoda, das bocas que manda de passagem à sua colega sempre que um menino giro entra, e depois faz olhinhos, deita as mãos na cabeça e mostra as duas filas de dentes brancos e pretos num sorriso. Jagoda não está consciente disso, mas amanhã, com certeza, continuará a sorrir da mesma forma. 


CICLO OS ESBOÇOS DO MINIBUS

    O primeiro quadro, óleo sobre tela, do pintor Neša Nedeljković foi vendido precisamente no minibus da empresa Gea, ao pé de Bujanovac. Um amigo ofereceu  cinquenta euros, assim dizia a mensagem de texto, e Neša agradecia a deus por ainda estar deste lado da fronteira o que lhe permitiu receber esta notícia maravilhosa. Primeiro, por uns instantes analisou o seu telemóvel e logo começou a pensar na maneira mais teatral de comunicar o facto à sua esposa, D. Djurdja Nedeljković, que nesse momento importante estava a roncar no volume máximo numa almofadinha de viagem, daquelas insufláveis, e estava, com o seu dedo mindinho, agarrada a um saco cheio de dinares. Passados uns minutos, Neša acordou cuidadosamente a sua esposa, mostrou-lhe o quadro e perguntou-lhe se ela queria guardá-lo em casa ou preferia oferecê-lo de prenda a uns amigos. Desde que o seu marido se aposentou, Djurdja apoiava as suas atividades no mundo das artes, mas desta vez sugeriu, um pouco indiferente, que o quadro pode ser oferecido. Ao ouvir isso, Neša saltou no seu assento de minibus e quase, surpreendendo-se a si mesmo, gritou com uma grande risada: Este é que não podemos vender. Djurdja Nedeljković, que já tinha sido professora de música, mas agora também na reforma, endireitou-se no seu assento de minibus e olhou para os capilares dilatados dos olhos do seu marido, enquanto ele quase lambeu a armação dos seus óculos. Pois, o tal momento era o momento mais importante na vida de Neša Nedeljković, ele sempre sabia que o sucesso estava à sua espera algures na vida, sabia isso desde os tempos que as meninas não queriam namorar com ele por ter borbulhas na cara, e também o sabia quando era o melhor aluno da turma, mas devido à morte dos pais não conseguiu terminar o curso de Direito, tal como o sabia quando ficou para passar a vida a olhar as barrigas escuras dos carros yugo por debaixo. Neša Nedeljković sabia que chegaria um dia como este, que as camadas de óleo do motor um dia de repente vão descascar-se dos seus dedos. Agora a florescer, como as árvores nos seus quadros, o cérebro de Neša entregava-se ao céu em tons de violeta. Deve estar a ter um avc, pensou Djurdja um pouco ingenuamente, olhando sem piscar para os olhos arregalados do seu marido. Esta é que não vamos dar a ninguém porque já se encontra vendida, por isso não é para guardar, finalmente articulou o Sr. Nedeljković com uma voz algo estranha, aguda e cortante, ou seja, quase que grasnou. A professora reformada de música saltou do seu assento notavelmente feliz, beijou-o na boca com os lábios húmidos, cuidados, e piou várias vezes para o ar. Depois, por algum tempo, ficaram a olhar o telemóvel e a foto do quadro, apenas um dos muitos, no total eram oitenta e tal obras, que Neša pintou no primeiro ano da reforma. E foi desta que os compradores gostaram mais. Foi por causa deste rio, apontou Djurdja para o rio pequenino e estreito que descia da direção da cabana até à colina que ficava no canto do quadro. Vês como o fizeste vívido. Eu acho que foi mais por causa das nuvens, disse Neša passando o dedo pelo ecrã pequeno do telemóvel tentando tocar as nuvens. Numas bombas de gasolina albanesas todos saíram do minibus para apanhar um pouco de ar, esticar as pernas, fumar um cigarro e comer um burek caríssimo. Djurdja e Neša Nedeljković ficaram sentados dentro do minibus, calados a analisar uma gaivota pintada, convencidos de que ela era a única razão pela qual o quadro foi vendido. Neša Nedeljković pousou a cabeça no ombro da mulher e pouco depois já estava a dormir com a testa encostada ao vidro gélido da janela que vibrava esporadicamente por causa dos buracos na estrada. A professora de música aposentada seguia, o telemóvel com a foto da pintura na mão, a apreciar a cabana pequena de vime e o riozinho rápido que desembocava numa colina claramente desproporcional, e a gaivota que voava na direção de quem olha o quadro. Depois olhou para Neša a dormir, tinha as mãos a tremer como as patinhas de um gato. Sabia Djurdja que ele era um génio ainda na altura em que ninguém o sabia, mas agora? E se ele agora ficar vaidoso? Se encontrar uma mulher mais jovem e fugir com ela para Paris, ter exposições, comer caviar, beber champanhe? A autoestrada escura atravessou as entranhas de D. Djurdja. Neša! Acordou o marido, e se não vendêssemos esta? Esta é muito especial para mim. Neša, sonolento, pensou em silencio por um momento, acarinhou-os cabelos da mulher e concordou: Vamos encontrar uma outra, e completamente ingénuo rapidamente caiu no sono. Djurdja sabia que foi por um triz, era uma questão de segundos, mas conseguiu evitar uma desgraça maior que levaria o seu marido até Amesterdão, talvez até Nova Iorque ou sabe-se lá onde, mas sempre longe da sua vontade. Mesmo assim, não podia evitar de imaginar a sala grande do Centro Pompidou e nela exposto o quadro de Neša O nascer do sol na terra natal, a dominar soberanamente o espaço e a multidão de pessoas que estão a admirá-lo. 


*
      Foi precisamente no quilómetro 354 de Belgrado que Marina se lembrou que podia comer algo. Tirou devagarinho o seu folhado com salsicha, mas o saco agitou-se e fez barulho como as ondas do mar, então, Marina tinha de oferecer o folhado aos que viajavam ao seu lado. Ainda por cima, um folhado de salsicha, coisa que não se partilha. Mas, que remédio, tem que fazê-lo. Queriam um bocadinho? Não? É muito bom, disse e enfiou os dentes fracos e afiados na borrachosa massa folhada. Nesse mesmo momento o minibus parou numas bombas, Marina saiu e tentou comer em pé naquela ventania. Estava a voltar da universidade, costumava viajar assim três vezes por semana entre Gračanica e Belgrado. Às vezes pernoitava na casa da sua prima em Borča, mas muitas vezes tinha vergonha de pedir para ficar lá, e a prima já não oferecia tanto, porque achava muito chato passar o tempo com alguém que está sempre calado de maneira tão indiscreta. Por causa da sua pele do rosto, nunca diziam que era bonita, diziam sempre que era inteligente, mas os dias das notas máximas já se passaram, e essa sua fama de esperta também desvaneceu. Desde que se matriculou no curso de doutoramento em Belgrado, a aldeia toda ficou com muito orgulho nela, ganhou fama de cientista importante e a pessoa mais letrada da terra. Se não tivesse aquela pele esburacada, ainda diriam que encontrou alguém e não estuda, mas anda na má vida, e que os pais querem esconder isso. Assim, todo o mundo acreditava que era uma doutoranda, e cada vez que vinha perguntavam-lhe sobre coisas que ouviram na televisão, e ela dava umas respostas curtas e ocas, numa vozinha baixa, sempre apertando os dedinhos finos. Isso desapontava-os muito, porque estavam à espera de uma sábia e levaram com esta mulher muda. Ainda assim, não havia outro doutorando na terra e tinham de satisfazer-se com as respostas lacónicas da Marina. Eles nem sequer sabiam que esta era a última vez que ela viajava de volta de Belgrado, que nunca mais ia regressar para a universidade, já que nessa douta instituição, ela foi humilhada e desprezada pela elite intelectual da capital. Ela própria ficou pasmada com o que aconteceu, uma estudante com notas máximas acabou por chumbar o ano por causa dos trabalhos ingénuos e emotivos sobre os Irmãos Karamazov, onde escreveu que Aleksei era um anjo, o que causou um grande choque no eminente professor que, por sua vez, chumbou Marina enquanto a colega do lado sorria satisfeita. Isto não é um curso para branqueamento dos diplomas das privadas, ouviu a Marina, boquiaberta, enquanto saía, para nunca mais voltar, do gabinete do seu professor de literatura que tinha as paredes em ocre. E lá estava ela, a apertar os dedos congelados dentro das mangas, ainda igualmente confusa, ela tentava a perceber o que é que se estava a passar e porque é que então, nessa relva seca ao lado da gasolineira OMV, ela sentia que estava completamente despida do sentido que, apenas alguns dias atrás, lhe pertencia plenamente. A pele do seu rosto ficou ainda mais inflamada por causa do stresse e da poluição de cidade, as borbulhas rebentavam sob o epiderme fino. O condutor do minibus mandou os passageiros entrar de volta no veículo, visto que, assim declarou, não tinha a mínima intenção de viajar por mais dez horas. Só Marina era quem não entrava. Toda a gente pôs-se nos vidros e olhava para ela com os pés pregados na relva e com os dedos completamente relaxados a levitar ao lado do seu corpo. Ela sabia que não podia voltar para casa e foi por isso que o seu corpo petrificou fingindo ser um carvalho. O condutor ficou furioso, os passageiros estavam bastante incomodados. Uma mulher aproximou-se da Marina, mas logo se assustou com os seus olhos sem expressão e recuou quase um metro. Passaram-se os minutos, todos à espera que Marina faça um movimento qualquer, mas ela não se mexeu, apenas o seu cabelo voava no ar. Marina era uma tocha. Iluminava-se a si mesma e sabia até onde essa luz conseguia chegar. O condutor estava farto e uma mala de cor índigo caiu na poeira aos pés dela. Então Marina tremeu e mexeu-se um pouco, o condutor e os passageiros olharam outra vez para o lado dela, e ela responde-lhes com um sorriso leve e tímido e levantou a mão direita para cumprimentar. O estrondo das portas do minibus a fechar fiz-lhe lembrar das palavras do seu professor catedrático: A sua falta do conhecimento da matéria e a sua tamanha iliteracia, tanto na vertente estilística como na científica, são de tal maneira manifestas que podia dizer-se que é uma vergonha para um universitário licenciado. Depois, Marina pegou na sua mala e seguiu pela berma da autoestrada até à próxima saída. Era a saída para Velika Drenova, mas ela nem sequer reparou. O ar frio de noite dava-lhe formigueiro nas bochechas, e Marina, talvez na tentativa de descongelar o rosto, abriu a boca e quase sem querer gritou: ALEKSEI ERA UM ANJO! Depois desceu até ao Mosteiro de Santo Elias para ficar por ali até ao fim da sua vida.

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