Eis uma passagem do primeiro capítulo "Reunindo forças para a fuga", da novela-reportagem “Expedição ao fogo de artifício”, ou “A respeito da União Europeia e dos jovens”, a qual será publicada ainda este ano pela Editora Petr Štengl.
(...) Por falta de experiência, entrei no clube logo após a abertura, quando a malta estava ainda apenas ganhando ânimo nos bares vizinhos. Até agora, só os efeitos de luz deambulavam pelo chão deserto, e o techno-set introdutório do DJ lembrava mais os mantras de um monge budista do que qualquer coisa satânica. Pelo reflexo húmido do chão, era óbvio que meia hora atrás ainda circulava pela sala um serviço de limpeza. Então, fiquei entretanto meditando sobre o ilusório destino humano e de vez em quando ia buscar cerveja, antes que no bar se começassem a fazer filas para cocktails. Mas se eu tivesse vindo mais tarde, certamente que deixariam entrar apenas as raparigas, no máximo casais. Pois bem, em termos de quotas, os estabelecimentos de dança são mil vezes mais conscientes do que os políticos. Nenhum clube do mundo se interessa por aqueles como eu – os machos-beta dando tragos na bebida alcoólica mais barata.
Enquanto a espuma da cerveja subia pela minha cabeça, as primeiras Afrodites começavam a aparecer nas mesas. Quanto mais bonita a aparência, maior a soberba delas. Por vezes também entrava a dançar na pista um ou outro temerário já tocado. Mas assim que ele notava que era mais embaraçante do que fixe, submeteu-se e desistia imediatamente. Nada, continuamos bebendo. E pouco depois mais dois. Step touch, step touch, mambo… E nada novamente. De seguida, surgiram mesmo sete corajosos. Até ninfas contratadas numa sensual lingerie tigresa saltaram para os varões. Atenção, de repente, todos nós estávamos a torcer-nos em frente do palco - inclusivamente o fotógrafo do clube e a sua brilhante Olympus da série E-M10. E se esta não era a euforia da multidão na antiguidade apelidada de "Dionisíaca", então caramba, não sei o que mais o poderia ser!
(...) A escolhida, a qual estava seguindo, descendo às profundezas da dança infernal, não tem mamas nem rosto, e é apelidada de Morte. A caçadora infalível de todos os caçadores. No momento em que eu sintonizo a respiração e o movimento do corpo a um certo estado mental despersonalizado, sou capaz de sentir os toques frios dela. Esta tal libertação de frustrações é a minha purificação com as águas do esquecimento. Apagar por um momento, não apenas a Andrea e todas as dificuldades quotidianas, mas também o peso de mim mesmo, a minha história. Dissolver-me no riso e na dança, que, embora tenha surgido de antigas cerimónias sexuais, por trás da cortina de felicidade esconde o portão do vazio. Vazio esse que parecia anteceder a evolução humana. E nesse tempo no Inferno - onde senão no inferno? - consegui abrir aquele portão e entrar! Tocado pelo álcool, numa orgia de pessoas sem nomes e sob a música mecânica de laptops, alto-falantes e outros dispositivos, convidei a morte para dançar; e ela aceitou.
Esquecimento. Esq...i...to Esc...….ooo Tuc, tuc, tuc, ruc, tuc, tuc, tuc. – Quando de repente um anjo penetrou nesta minha morte. Calma, não entro num esoterismo barato, embora que naquele momento eu já não tivesse nenhuma ideia clara sobre qualquer realidade. Resumindo, o gerente do clube preparou-nos uma surpresa ao bater da meia-noite: um pequeno espetáculo de teatro. As ninfas dos varões desapareceram para os vestiários. E o anjo - que acrobaticamente por cordas se lançou no ar por cima do palco, era um stripper alado de fio dental rosa e com um violino. É bem possível que pudesse ter sido também uma stripper, pois eu não consegui ver tão bem até acima. Digamos que provavelmente seja algo intermédio, algo terceiro, como costuma ser o caso dos anjos. E é claro, as suas asas eram amovíveis, disponíveis em qualquer aluguer de fantasias de carnaval. Além disso, o violino tinha o aspeto de um modelo em plástico; mas nada disso importava.
Assim que o anjo tocou as cordas com o arco, o DJ, cambiou dos sets mortais para um remix de um concerto de cordas. Devido também às sensacionais projeções de vídeo que acompanharam o espetáculo, eu apostaria na Música para os Reais Fogos de Artifício do Händel, embora originalmente escrita para uma banda de instrumentos de sopro. Os outros, incluindo o gerente, estavam satisfeitos com a ilusão da nobre e extinta música – ainda precedente dos Tempos Primitivos atuais. E como não sabiam dançar isso, apontaram os captadores de vídeo de bolso curiosamente para cima. E com a outra mão protegeram os seus olhos vermelhos do dilúvio de luz.
Maestro em tanga, no inferno, em playback. Seria perfeitamente absurdo não ressoar algo sagrado em mim que eu tentava matar aqui. Faíscas voaram dos movimentos do arco do anjo como durante uma solda, e o seu arco cravou-se diretamente dentro do meu coração. De maneira nenhuma, isso já não era morte! Este era um enviado, se não dos deuses, então simplesmente da vida, do amor e de tudo. É claro que no fundo era um parvo saído de um ginásio ou salão de massagens, que apenas fingia ser alado, e ninguém lhe engolia isso. Uma vela faísca na escuridão rolante do ciclo humano… e nada mais. Inconscientemente deu-se um disparo só para mim, cuja intensidade eu deveria sentir como permanente. Qualquer um que renegue os seus desejos da juventude é perseguido por tais sinais com bastante frequência. Uma vez é no reflexo de um sonho, outra na falta de felicidade quando eu deveria estar feliz como nunca. Ao mesmo tempo, porém, a pessoa inventa técnicas para diminuir os remorsos até, não raramente, a sua vida encontrar um novo significado na luta contra eles.
(...) Não, ainda não devo assentar. Não devo entregar-me indefinidamente ao empregador sem perder uma gota de sangue. Não devo deixar de usar preservativo enquanto se faz amor, mas sim enfiar à Andrea uma aliança no dedo. Escolher um nome, não para uma figura literária, mas para um futuro recém-nascido, e promover os nossos pais à função de avós neste livro da vida. Não se apoderar do papel do capítulo final da Linhagem - vamos deixá-lo para o apocalipse – mas criar condições para a continuação da sua sitcom. Corresponder ao sonho milenar da pequena burguesia, tornar-se a estafeta, a transição, sacrificar-se… Reduza-se a poesia ao dístico muito batido de amor/dor, mais concretamente a dor do trabalhador. Ainda que a gravidez aliviasse a Andrea de menstruação dolorosa, eu por outro lado menstruaria mentalmente quando visse a barriga desabrochante dela. – Não quero essa criança! Atiro-a pela janela da materrnidade ou mando-a num carrinho de bebé para debaixo de um elétrico. Eu sou a criança em questão - órfão entre as pessoas, ao alcance do aborto. Entendem? Alguém aqui fala checo? Esta criança precisa ser salva!
Logo de seguida, acrescento que nem sequer estou interessado em boicotar a atual ordem social. Não quero tornar-me o seu intruso e o lado obscuro. Nem sofro da influência do romantismo dos amaldiçoados – para isso conheci muitas pessoas desgraçadas. O meu pai ganha a vida como street-worker na Cáritas, por isso já desde a minha infância que passava a véspera de Natal numa mesa com pessoas sem-abrigo, das quais ninguém gosta. Mesmo que vocês tenham decidido pelo destino dos indigentes - e eles na maior parte das vezes não tenham decidido assim - a rua e a bófia transformarão-vos de tal forma, que do desejo pela liberdade sobrarão apenas dentes arrancados.
Outra solução? Que tal continuar com os estudos de mestre até ao doutoramento? Progredir aos poucos até se tornar autoridade, anunciando guerra pelos direitos dos mais fracos em solidão desde a sua torre, com vista de pássaro sobre as casas de família? Se alguém não tiver fé suficiente para se tornar num monge, poderá sempre dedicar-se à ordem dos académicos. Submeter a mente jovem às leis das relativizações incalculáveis, das refutações e polémicas, nas quais a coragem é expulsa pela árida precisão, de tal maneira que as ideias de repente se tornam em hipóteses, as hipóteses em citações de outros, as citações em murmúrio de notas de rodapé… E o sábio escreve, até que dele sobrem apenas os braços que se esqueceram de como abraçar.
Eu queria acreditar que depois de ter desprezado tanto a vida na miséria como a vida nas alturas ricas ímpias, estava na hora de me apoderar do destino das minhas origens: o destino dos meus pais. Agarrar o amor sobre o qual escrevera durante muito tempo e com o meu anúncio de casamento selar o vazio após o divórcio deles. Sustentar-me com trabalho, após ter sido sustentado por outros. Agora que tudo isso se oferece como um pesado trilho para o túmulo comum de há gerações: subitamente o stripper acena com as asas, o fumo dos cigarros é levantado pela música sonhadora da infância, e eu, queira ou não, tenho que voltar pela terceira vez. Voltando do Inferno numa noite deserta para a Andrea e ao mesmo tempo deixando-a na minha imaginação. A partir de agora, só tenho uma coisa em mente: inventa o teu próprio destino! Zelosamente. Sem qualquer respeito. Mesmo se apenas vagueares por entre as opções e acabares a decidir-te por nada.
A quem não saiba o que fazer a seguir, o tio Google aconselhará. Originalmente um projeto de doutoramento em serviços de digitalização de bibliotecas, graças a um algoritmo conveniente para a busca de informações, saltou para a posição favorita do mecanismo de pesquisa na Internet e para uma das marcas mais valiosas do mundo. Outras marcas, para melhorar a sua posição de pesquisa, responderam a isso fazendo aumentar o spam. Portanto, o acesso mais facilitado à informação, inspirou posteriormente o boom do lixo de informações. Além do botão "Pesquisa Google", também existe um botão "Sinto-me com sorte" que vos desloca diretamente para a primeira página pesquisada. Então biquei no mecanismo de busca algo no sentido de "não quero trabalhar depois dos meus estudos, o que fazer a seguir?" e o botão teletransportou-me para uma entrevista de estilo de vida com uma suposta voluntária europeia. Logo após algumas frases vagas, tipo "experiência única", "mudar o mundo para melhor" ou "encontrei o sentido" acompanhadas de selfies embelezadas, seguidas de um link para uma página com projetos específicos. Após clicar neste, a mais atual pareceu ser a oferta de um ano de voluntariado em Bordéus, França, diretamente sob o patrocínio da Casa Europeia. Do comentário não ficou muito claro qual seria o objetivo da estadia. Provavelmente tudo e nada com suficiente tempo livre. Deve haver um total de até doze voluntários de diferentes países, o que me chamou ainda mais a atenção, entre outros projetos, para dois ou três infortunados em casas isoladas junto à floresta. Segundo dizem, todas as despesas são cobertas pela União.
(...) E enquanto isso vou me sujar com a propaganda europeia? Por favor, é possível permanecer limpo hoje? Quase me apetecia dizer “escolhe a tua propaganda e ama-a”, se tal não dependesse da incompreensibilidade de cada situação. A pureza política esteve na moda no nosso país após a queda do comunismo, o qual até a escova de dentes alcunhou de a camarada, o dentífrico de o camarada e a boca de Comité Central. Condenando a retórica de propaganda daquela época, fossilizada ao ponto de fazer rir, quase nos afastámos da política em si. Felizmente, à distância de um quarto de século fica claro que até a ingénua anti-política era basicamente apenas um truque de algumas pessoas mais capazes que, à sombra dos posters das eleições, repartiram entre si a riqueza nacional. Agora está na hora de agarrar a democracia pelas nossas mãos, enquanto ainda temos um teto sobre a cabeça. Saiamos às ruas – antes de nos deitarmos nelas. E neste sentido adquirir o conhecimento de como funciona a Europa em termos políticos, tem-me no mínimo parecido instrutivo, ainda que eu devesse ficar desiludido.
Em 2004, quando a República Checa se juntou à União Europeia, tinha eu quase quinze anos. Nesses tempos eu ainda não havia descoberto o meu amor pela ópera, mas por outro lado já conhecia os prazeres da masturbação ou a estagnação da Igreja Católica, que antigamente costumava ser a minha mãe adotiva. Lembro-me de perceções televisivas desta admissão como dum evento festivo, contra o qual não se resmungava muito. O então presidente, por um lado solicitou a entrada na UE e, ao mesmo tempo, votou contra no referendo de adesão juntamente com cerca de um quinto dos eleitores. Provocativamente, enquanto decorria a cerimónia de adesão ele permaneceu na montanha Blaník, cujos cavaleiros míticos, após terem aderido à NATO, se deveriam também submeter à Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). E, três anos depois, ele intensificou a sua oposição devido à assinatura do Tratado de Lisboa, o qual ele via como um caminho errado da união, conduzindo-a "da liberalização para a unificação", em outras palavras, da liberdade para a uniformidade, de um empresário checo para um comunista europeu.
Eu estava a aperceber-me dos dois lados - um influxo generoso de subsídios, simbolizado por um círculo de estrelas douradas em vários prédios novos, mas também o lamuriar sobre o rigor das diretrizes implementadas que puseram muitas cantinas e agricultores de joelhos. Mas quando descobri a erudição do argumento europeu associado a essa ou a outra área era-me geralmente mais próxima do que a defesa dos representantes do povo checo nos bares, cuja lengalenga sobre a "colonização de Bruxelas" não compartilhava. Porquê tornar-nos numa província mentalmente incapaz, se pela lógica do projeto europeu devíamos ter o papel dos seus co-criadores? Também fiquei grato à União pelo Erasmus – mesmo tendo corrido muito mal, mas a seguir fiquei meio desiludido pela minha visita a Bruxelas.
A poucas horas de autocarro da Paris suja, hipócrita e em colapso, fui recebido pelo salão de exposições da Europa – metade da cidade era só bolinhos como se fossem para as tias de spa e outra metade era um complexo de prédios super luxuosos onde o Poder está sediado. Digo-vos, mesmo se os deuses estiverem aqui sediados - desde que exista apenas uma vítima de injustiça, é necessário ter cuidado perante qualquer poder. Não se deixar embalar com a música dele. E estar sempre do lado dos fracos. É exatamente isso a base do intelectualismo, determinada por Émil Zola: não é apenas uma astúcia incompreensível, como costuma ser caricaturada. Um intelectual é um erudito que mostra coragem, mesmo com prejuízo da carreira profissional.
É paradoxal, que o meu estado interno sacudido pelas primeiras impressões de Bruxelas foi finalmente abalado durante a visita do Parlamentarium - um centro de visitas supermoderno, do qual esperava que aprofundasse o meu interesse pela UE. Infelizmente, o centro parecia ser para totós, oficialmente suposto para crianças. Nem as tecnologias mais caras escondiam a nudez da única ideia que aqui flutuava: A unidade europeia na sua diversidade protege-nos da terceira guerra mundial. Eu esperaria mais do conceito; este assim era apenas um slogan, o qual foi aqui repetido na forma de uma bolha de discurso tipo banda desenhada na boca dos pensadores mais importantes dos últimos séculos – desde Churchill a Wagner, Camus ou Kafka. E isso ofendia-me. Essa desconsideração da propaganda face a outros destinos, sem anunciar completamente o destino da união com todas as suas contradições, derrotas e incertezas… nas quais alguém possa acreditar.
Então eu acenei para um ano de voluntariado europeu, para entrar naquele vazio e para criar o meu destino nele. “Apenas mais uma fuga!“, repreendia-me a consciência checa, mas – tal como vocês devem admitir, o que na verdade me afastava, era tudo aquilo considerado checo e correto, ou seja, plantar uma árvore, construir uma casa, procriar um filho ingrato. Eu estava à procura de um barco salva-vidas que me levasse de todas as aldeias, cidades e maternidades, cujos defensores arruinados aguardam todos os dias pela nossa própria derrota. E esse barco surgiu, bastava antes descer ao coração do inferno.
Ou os checos desconheciam esse projeto, ou estavam com preguiça de tirar o focinho do covil, pois dada a quota obrigatória para aceitar um checo no projeto, eu aguardei pela concorrência em vão. Aceitaram-me de imediato sem que tivessem lido o meu currículo.
Foi nessa altura que reuni coragem para contar à Andrea. A cor da pele do rosto dela combinou com a da parede, ela não entendeu nada: “Acabámos de nos juntar e tu vais partir assim subitamente?“
“Querida, desculpa...“, eu estava a desviar o olhar, “sabes, a minha vida está em risco.“
“Querida?! És um egoísta que não sabe amar.“
E talvez o acertar na presunção do teórico-do-amor me tenha impedido de terminar a nossa relação. Reconheci que se a nossa relação tivesse sido mantida principalmente por sexo e banalidade, a distância da correspondência podia aprofundá-la de maneira rara ou lentamente paralisá-la, sem um único corte. Por ímpeto de novas impressões e de novos amores! Da mesma forma, à distância, eu funcionei certa vez numa relação de amor com Deus, até que Ele deixou de me responder.
O meu deuzinho foi substituído pelo meu pai gordinho, um humanitário de caridade, que se prejudicava enquanto se dedicava aos outros. Encontrei-o no computador de olhos fixos num jogo de armas americano descarregado de servidores piratas. “O que é?“ ele tirou os fones dos ouvidos, presumindo que eu lhe queria contar algo.
“Estou-me a preparar para ir por um ano para França.“
“E precisas de algo?“
— Então não me dizes mais nada? Talvez para onde, porquê e o que irei lá fazer? Eu só me queria despedir de ti. Pois, tanto faz não é?… Eu voltarei, ao contrário da mãe. Podemos falar por Skype como se eu nem tivesse ido embora. Afinal, com um portátil, estou em casa em qualquer lado desde que haja uma tomada e ligação à internet. De facto, online talvez conversássemos mais do que se continuássemos a viver na mesma cidade. Bem, pelo menos essa é a vantagem da distância: a indispensável necessidade de se compartilhar. A bondade que antes costumava faltar e agora surge apenas na separação.
Não te incomodes, pai. Pessoas estão a morrer no teu ecrã. Eu vou-me embora para viver o meu próprio filme co-produzido com a União Europeia.