Capítulo 1
A mamã morreu sozinha e devagar. A causa da morte, dizem os médicos, foi uma intoxicação. A mamã intoxicada. Grande estupidez. Não discuti com os médicos, limitei-me a assinar os papéis e a tratar do enterro. Se havia algo que a minha mãe conhecia bem era a sua farmácia. Sempre foi exata com as doses. Não se enganava. À menina, por enquanto, contamos-lhe a versão oficial, a da intoxicação. Um dia contar-lhe-ei eu mesma que a avó dela se suicidou.
A menina esteve presente em todos os momentos, depois de lhe dar a notícia levámo-la ao tanatório. Esteve colada às minhas pernas durante todo o funeral e na missa que Raul se empenhou a organizar. Em cada momento explicámos-lhe o que estava a acontecer com pormenor, para que pudesse compreender que a avó tinha morrido. Aceitá-lo. Raul propôs deixá-la com a mãe naqueles dias, mas eu sei bem que o melhor nestes casos é ver tudo. Para assimilar as mortes é preciso vê-las, é preciso tocá-las. Se alguém morre e se se faz como se nada tivesse acontecido, formam-se uns buracos negros que se arrastam toda a vida e pesam como lajes. Com o tempo vai-se acumulando sujidade por dentro, e chega um momento em que é impossível limpá-los. São como o apartamento da mamã. Não sei se poderei esvaziá-lo e limpá-lo em apenas sete dias. Raul ofereceu-se para me ajudar. Mas é algo que tenho de fazer só eu, com as minhas duas mãos.
Vendemos o apartamento tão depressa que não tive tempo de me habituar à ideia do que estava a acontecer. A única coisa que gostaria de conservar comigo é o piano. Quero levar o piano e, quando muito, os potes da farmácia da mamã. Sempre gostei daqueles potes. Recordo que, desde pequena, lia as inscrições em voz alta, que soavam como música nos meus ouvidos ao pronunciá-las todas seguidas. Borato de sódio. Cremor de tártaro. Bálsamo verde. Como um esconjuro. Ainda gosto de ler essas palavras, pintadas a negro sobre a porcelana dos potes, com uma caligrafia de professor, tocar o final das letras curvas arredondando-se para fora.
Não levarei todos os potes porque ocupam uma parede inteira. Agora estão vazios. A primeira coisa que fiz depois de encontrar a mamã morta na cama dela foi esvaziar a farmácia. A mamã automedicou-se toda a vida com as suas ervas. Para as receitas usava os potes da prateleira superior. Esvaziou o resto das prateleiras quando fiquei grávida. Porque a mamã, se fez mudanças na casa, foi para que Sara não corresse perigo. Instalou fechos para crianças nas gavetas, fixou as estantes à parede e pôs cortiça nas esquinas das mesas baixas. Sem dúvida, a farmácia será a única coisa que conservarei da mamã. Juntamente com o piano. Pô-los-ei juntos na saleta da minha casa. Creio que caberiam até cinco potes juntos, um junto ao outro sobre a tampa fechada do piano. Sabugueiro-branco. Beladona. Folhas de buxo.
15
mariana torres
Antes de chegar à sala, tenho de passar pelo resto do apartamento da mamã. Devo seguir uma ordem lógica para poder fazê-lo bem. Como ela teria gostado. Começar pela cozinha, que fica no fim do corredor, percorrer desde lá — o ponto zero — as divisões da casa pela ordem inversa, da última à primeira, esvaziando-as das coisas acumuladas, como se tivesse passado por elas uma praga de gafanhotos. E chegar à sala. Deixar o quarto que era de Adrián para o final. Como ela teria feito.
Quando entrei no apartamento no dia da morte da mamã, todas as janelas estavam abertas. São sete divisões com duas, três ou quatro janelas cada uma. A sala, em lugar de janelas em sentido estrito, tem portas envidraçadas que se abrem para uma pequena varanda, protegidas por portadas de madeira. Essa é a parte do apartamento virada para a rua. Quando as portas das varandas estão abertas de par em par, as portadas batem nos vidros suavemente. Quando entrei no apartamento da mamã o conjunto movia-se compassado com a brisa, como se estivesse vivo e estivesse a gritar. Quando entrei, a corrente de ar e o frio faziam parte da casa. A mamã estava na cama e parecia adormecida. Mas eu soube que tinha morrido antes de vê-la, assim que cheguei. Soube-o ao sentir como me empurrava o vento ao abrir a porta com o meu molho de chaves. Tive de empurrar com todas as minhas forças.
Porque a mamã, para que a sua alma fosse diretamente para o céu, tinha tido a precaução de morrer com todas as janelas abertas.
Em apenas três horas tinha metade da cozinha metida em caixas. Não me preocupei em embalar com cuidado porque vai tudo para o lixo. Se se partir uma chávena não há problema. O apartamento da mamã tem sete divisões e todas elas estão cheias de objetos. A mamã tinha a tendência para a acumulação compulsiva. Guardava tudo em casa, como se as coisas a protegessem. E, embora no seu caos fosse organizada, nos últimos meses deu-lhe para guardar coisas nos lugares mais estrambólicos. O dinheiro dentro de chaleiras, as agulhas de tricô entre os talheres da cozinha.
Com o que eu não contava era encontrar aqui, na despensa da cozinha, mesmo em cima das cestas repletas de maçãs e laranjas, os meus sapatos de verniz. Tive de subir a um banquinho para os alcançar. Estão intactos, brilhantes como se os tivessem polido no dia anterior. E os atacadores, duros como pedras, estão atados com um laço perfeito.
Eram os meus sapatos dos domingos, os que usava para visitar os túmulos do pai e de Adrián. Usei-os pela primeira vez no enterro do pai, dessa tarde recordo que passei horas a polir os sapatos com um pano, para que brilhassem. E que, de cada vez que os usava, Adrián pisava-mos para manchá-los de novo. Recordo também que o avô alemão se aproximou de nós e me disse que eram uns sapatos perfeitos. E que conseguiu, por uma espécie de feitiço que exercia em Adrián, que me deixasse sossegada. O avô alemão era novo para nós. Falava um espanhol forçado, pronunciado às pancadas, e esteve o tempo todo com o meu irmão, que o seguia como um cãozinho obediente.
Antes de voltar à Alemanha disse-me que o meu irmão estaria bem, que ele se encarregaria de cuidar dele. Mas Adrián morreu pouco depois de o pai morrer. Mandaram o seu corpo num caixão artesanal, fabricado numa das oficinas do avô. E tivemos outro enterro, outro túmulo. Creio que com isso começou o declínio da mamã. Não deixava de repetir que a família do meu pai, de tanto fabricar caixões, estava amaldiçoada. E que essa maldição era a culpada de tudo. E que Adrián estava melhor morto do que a fabricar caixões e a maquilhar cadáveres. Quando dizia isto benzia-se imediatamente.
No ano da morte do meu irmão, íamos todos os domingos ao cemitério. A única coisa que recordo dessas excursões eram os sapatos negros e o quão importante se tornou para mim mantê-los limpos. Se conseguia que brilhassem o suficiente, os sapatos andavam sozinhos, eu não tinha de fazer nenhum esforço ao caminhar. Recordo o ruído com eco que faziam os saltos ao caminhar com os sapatos de verniz pelo caminho asfaltado do cemitério. No cemitério era preferível fazer ruído — para que os mortos soubessem onde estávamos a cada instante —, e caminhar depressa, muito depressa, para que, nem por engano, nos detivéssemos sobre um morto diferente do nosso. Recordo que sentia os dedos dos pés apertados na ponta dos sapatos, sobretudo quando os domingos se alongaram e começou a fazer calor. De toda a minha roupa preta, os sapatos de verniz eram a única coisa de que eu gostava. A mamã, no ano da morte de Adrián, obrigou-me a vestir-me de preto. Agora que tenho os sapatos nas minhas mãos, parecem-me ridículos, completamente fora de moda.
E, além disso, cheiram a maçã.
Gostava de lhes dar brilho até conseguir que a minha cara se visse refletida neles. Sapatos-espelho. Quando caminhávamos no cemitério, a mamã não me deixava deter-me, por muito pó que levantássemos ao andar. Quando queria parar para sacudir os sapatos, puxava-me pelo braço. Tínhamos muita pressa embora ninguém estivesse à nossa espera em casa. Os puxões pelo braço deixavam-me marcas vermelhas. A mamã levava sempre um ramo de três flores. Ao caminhar levava o ramo virado para baixo, com as três flores a olhar para o chão, a encherem-se de pó. Uma flor era para o meu irmão, a outra para o papá.
Nos atacadores, agora que lhes toco, notam-se os anos, estão rígidos, quase fossilizados, como se tivessem ficado muito tempo nessa mesma posição. Tinha os pés tão pequenos quando os estreei que não serviam a Adrián, que na altura tinha os pés só um par de milímetros maiores que os meus. No dia do enterro do pai tentou calçá-los, só para me chatear. Até que chegou o avô e levou-o. E a verdade é que, desde esse dia, nunca mais me voltou a chatear. Penso nisto e sinto as mãos quentes, nasce-me como que um impulso nas mãos, querem mover-se para me benzer, desenhar com os dedos na minha testa o sinal da cruz, como a mãe fazia. Mas sacudo-as com força, distraio-as, afasto-o de mim.
Os atacadores, estendidos agora na minha mão, parecem duas cobras finíssimas. Enrolo-os sobre si mesmos, meto-os dentro dos sapatos, em cada sapato o seu, e empurro a bola de atacadores até ao fundo, pressiono-os na zona da ponta. De fora já não se veem. Agora são só sapatos sem atacadores. Inofensivos.
Quando vou atirar os sapatos para a mesma caixa para onde atiro o resto, mudo de ideias. Deixo-os no chão para montar uma caixa nova. Para que a caixa nova aguente melhor, uso o dobro de fita de embalar. Pego nos sapatos de verniz — que, de tanto lhes tocar com as minhas mãos sujas, ficaram manchados de pó — e meto-os dentro desta caixa vazia. Não os limpo. Separo esta caixa do resto e ponho-lhe um rótulo com um marcador. Escrevo em letras vermelhas e maiúsculas: mamã.