View Colofon
- "Diário de uma Portuguesa em Angola" translated to IT by Elisa Rossi,
- "Diário de uma Portuguesa em Angola" translated to SR by Tamina Šop,
- "Dagboek van een Portugese in Angola" translated to NL by Finne Anthonissen,
- "Dnevnik Portugalke v Angoli" translated to SL by Maruša Fakin,
- "Fragment of a diary" translated to ES by Sara De Albornoz Domínguez,
- "Jurnalul unei portugheze în Angola" translated to RO by Iolanda Vasile,
- "Diário de uma portuguesa em Angola" translated to PL by Gabriel Borowski,
- "Deník jedné Portugalky v Angole" translated to CZ by Štěpánka Huláková,
João Paulo Cotrim
Este texto é um excerto de Diário de uma Portuguesa em Angola publicado pela Chiado Editora em 2019.
Paulo Capinha
Diário de uma Portuguesa em Angola
Prólogo
Durante anos a fio fui bombardeada com histórias acerca de Angola. Histórias extremistas de quem se apaixona ao primeiro segundo e se sente em casa neste país, ou de quem odeia e não se consegue adaptar. Histórias mirabolantes daquelas que parecem ser de ficção, porque há uma parte de nós que não acredita que possam ser verdade. Pensei sempre que exageravam bastante e, tal como o provérbio popular indicado para esta situação é de que quem conta um conto acrescenta um ponto, neste caso, acrescentavam vários.
Durante anos andei indecisa sobre conhecer ou não este país tão místico. Havia alturas em que pensava que seria um país obrigatório a visitar, a colocar esse carimbo no meu passaporte a confirmar a quão temerária eu consigo ser. Mas havia outras em que a medrosa que reside em mim se negava a tal aventura e eu pensava que nunca me haveriam de ver lá.
Quando a possibilidade se apresentou nem olhei para trás. Actualizei o meu passaporte, levei todas as vacinas obrigatórias e tentei não me assustar com o sem número de doenças que poderia contrair lá, fui tratar do visto, despedi-me do meu melhor amigo felino, fiz a mala e ali estava eu…pronta a desbravar o país desconhecido e, quem sabe, me apaixonar por ele.
1ª Parte
Luanda
Dia 1
Acordei cedo com aquela sensação de ser uma aventureira, daquelas que vemos nos filmes americanos em que embarcam em viagens para países complicados ou longínquos, nada levando mais que a vontade de conhecer outras culturas e novos povos, ainda que, no meu caso, o país já havia sido colonizado pelo povo português. Mas estava tão entusiasmada por ir que até nem dormi bem durante a noite com medo de perder a hora e o avião.
Tenho de confessar que adoro o aeroporto. Aquele corrupio de pessoas a correrem de um lado para o outro à procura do balcão do check-in, olhar para o ecrã e ver todos aqueles destinos que eu tanto gostaria de visitar, as despedidas longas e chorosas, as tímidas e apressadas para ninguém se aperceber que vão chorar, aquelas sentidas com abraços apertados a adivinhar as saudades e aquelas curtas e sorridentes a adivinhar as férias bastante aguardadas.
Foi uma viagem de oitos horas bastante tranquila, sentada no meu assento, com os auscultadores nos ouvidos, a prender a minha atenção em filmes e a deixar que a minha imaginação corresse solta a tentar prever como iria ser a minha chegada. Será que as pessoas iriam perceber a excitação que estava a sentir em conhecer o país delas, será que me iriam tratar bem, será que eu me iria adaptar desde o primeiro momento. Essas eram perguntas que desfilavam na minha mente. Respirava fundo e deixava o positivismo me cercar.
Chegada a Luanda numa temperatura que não estou habituada com uns 30 graus de muito calor e humidade em que parece que fui abraçada por um cobertor de abafo, que me confortou e me transmitiu uma sensação de boas vindas. Como qualquer primeira vez, tudo é novidade e estou a tentar absorver tudo devagarinho para não perder uma pitada.
Vimos o desfile habitual das bagagens com os dedos entrelaçados numa prece muda a rezar para que a minha mala não se tivesse extraviado. Depois tentei-me pôr-me cómoda para esperar pela minha boleia. Depois de uma hora de espera, sentada naqueles bancos desconfortáveis e rijos, não me foi difícil me abstrair disso e olhar para tudo o que estava a acontecer à minha volta. Olhei como um cego que enxerga pela primeira vez, porque estar naquele aeroporto, que não tem comparação com nenhum outro em que eu já estivesse, é uma experiência única. Finalmente chegou a nossa boleia.
Engarrafamento é a desculpa mais dada e ninguém ousa discordar uma vez que, assim que entramos no trânsito, essa é a palavra mais usada por estas bandas. Eu já tinha uma ideia do que me esperava mas ninguém me disse que não havia estradas na capital. Afinal é uma capital. O que existe são buracos grandes o suficiente para caberem pessoas e depois de dias de chuvas eles estão bem mais profundos. Para não falar na ausência de iluminação noturna. Os candeeiros estão lá assim como inúmeros semáforos para auxiliar o trânsito, o que não existe é eletricidade…em lado nenhum, seja na rua ou no interior das casas. Foi necessário uma hora de desvios (tanto dos buracos como das inúmeras pessoas que atravessam as ruas como se fossem passeios e não estradas), de caminhos sem luz, de fogueiras de lixo a arder (fonte da única iluminação), de armazéns destruídos e casas (ok, admito que casa parece excessivo para o que quer que seja que se possa chamar a quatro paredes de um material estranho, um telhado de zinco e nada de portas nem janelas) e cheguei ao meu destino.
Devo de admitir que, depois de ver a maioria das casas existentes, estava bastante apreensiva por saber onde iria habitar durante um mês, mas devo de ter uma estrela da sorte que me adora porque a nossa casa está mais para mansão do que para casa e tem duas coisas que eu acho imprescindíveis: Casa de banho com água canalizada e ar condicionado. A vida é boa. O passo seguinte foi um bom banho para tirar a cola do calor e de uma noite de sono para voltar a recolocar os ossos e as articulações que ficaram deslocadas da viagem e fiquei como nova.
Respirar fundo é algo que não estou a conseguir fazer uma vez que o calor é opressivo e há um cheiro a iodo no ar de tanta humidade. Os mosquitos dançam a volta de qualquer foco de luz que encontram e eu espero que eles fiquem por lá e me deixem em paz. Afinal nunca fui de gostar muito de insetos e depois da aula de doenças passíveis de contrair neste país tropical, confesso que tenho medo deles.
Mas apesar disto tudo...acho que vou gostar disto aqui.
Dia 2
Dormi que nem um bebé. O conjunto de sete horas de voo, de uma hora de carro e do calor opressivo que se faz sentir faz-me agradecer de mãos juntas por ter ar condicionado no meu quarto. Pequenos grandes luxos. Divido o meu quarto com uma pequena residente chamada ngela, sobrinha da dona da casa que a está a criar e a minha companheira de viagem e de aventuras. Um quarto cor-de-rosa (que me assenta que nem uma luva, não fosse eu uma princesa), com dois beliches, uma secretária e uma televisão de ecrã plano que não funciona, mas que decora super bem o quarto.
Lá fui eu para a casa de banho munida com a minha escova de dentes e uma garrafa de água para a minha higiene matinal. Acho um desperdício lavar os dentes com água da garrafa mas não ouso contrariar as ordens da médica e assim que me deparo com o tom da água que sai da torneira deixo de achar descabido. O outro motivo é porque simplesmente não quero ficar doente aqui neste país onde o sistema de saúde é tão precário, para além de ser excessivamente caro.
Tomo um pequeno-almoço que não fica a perder para o que costumo comer em Portugal, onde nunca deixo faltar o meu café com leite e um pãozinho fresco que a pequena ngela nos foi buscar e fico pronta para a minha primeira ida à capital durante o dia.
Tudo o que se passa nos passeios para mim é novidade e há sempre tanto a acontecer que por momentos sinto-me tonta de tanto olhar de um lado para o outro para não perder nadinha. Uma novidade estranha tão alienada do que estou habituada, mas que me deixa totalmente fascinada. O nosso condutor designado é o segundo filho da senhora que nos está a dar dormida, comida e um tratamento digno de princesa. Depois de algum tempo a andar de carro ele estaciona o jipe preto de vidros fumados num lugar mesmo à beira de um riacho onde estão imensos rapazes e um sem número de carros estacionados, de portas abertas. Mesmo ao meu lado encontra-se um rapaz de tronco nu, com uns calções cheios de buracos e umas havaianas calçadas, claramente dois números abaixo do tamanho do pé, com um balde cheio de água na mão e qual não é o meu espanto quando ele despeja todo o conteúdo no interior do carro. Fico feliz pelos vidros fumados porque assim o moço não pôde ver a minha expressão de incredulidade perante o que ele fez. Quando pergunte o que ele está a fazer é-me explicado que é assim uma lavagem de carros nestas paragens. A quantidade de pó que existe no ar só se consegue limpar assim e como estão temperaturas altíssimas os estofos secam num piscar de olhos. Mesmo assim acho estranho, mas quem sou eu para julgar.
Após a marcação de uma hora para o nosso jipe ser limpo, seguimos rumo a Luanda. Assim que chego à capital continuo à espera de ver todos os traços de uma cidade mas bem que posso esperar sentada. As estradas são uma confusão sem vias definidas, os peões atravessam quando e onde querem, até porque não existem passadeiras, existe terra vermelha em vez de passeios e vejo lixo. Montes e montes de lixo para onde quer que olhe.
O dia é passado entre sair e entrar no carro, oscilar entre um calor que nos pesa a alma na rua e um frio nórdico no interior do carro, sair e entrar no “Belas Shopping” (o centro comercial mais “in” da zona) onde me senti quase em Portugal e, a cereja no topo do bolo, entrar no equivalente a um pingo doce angolano. Inúmeras caixas abertas com filas de mais de mais de dez pessoas por cada, mais empregados do que consigo contar e, apesar disso, encontrei-me num balcão da charcutaria com mais quatro clientes a esperar uns bons vinte minutos enquanto seis empregados que deveriam atender os cientes estavam por detrás do balcão super "atarefados" a falar uns com os outros ou então num desfile. Atender o freguês é que não. Típico.
Para completar o dia e me sentir mais angolana nada melhor do que uma refeição própria deste país. Peixe prata grelhado com banana pão cozida. Conclusão: delicioso. Pelo menos alivia-me saber que não morrerei à fome desde que continue a ignorar algumas das normas de higiene básicas, mas assumi a velha máxima de que olhos que não vêem, coração não sente. No meu caso, olhos que não vêem, estômago que não se embrulha.
Surpreendo-me a mim própria pela naturalidade e desenvoltura que aceito as realidades deste país.
Dia 3
Ontem foi uma noite de trovoadas e chuva. Para mim foi um espetáculo lindo da mãe natureza, onde o céu escuro era constantemente iluminado pelos relâmpagos. Primeira vez que vi iluminação noturna neste país. Mas por causa disso a eletricidade foi-se para quase todas as casas menos a nossa porque, graças a todos os deuses existentes e mais alguns que eu possa inventar, temos gerador.
Acordei muito cedo até porque aqui não dá para dormir até tarde. Há voltas a dar, sítios para onde ir e temos de dar desconto ao tempo que vamos perder nos engarrafamentos. Uma viagem que, noutro sítio qualquer poderia demorar quinze minutos, nós perdemos hora e meia nas melhores das hipóteses. O que eu não me queixo, a vista é sempre diferente ainda que possamos passar pelos mesmos sítios. Primeira visita da manhã a caminho do meu pequeno-almoço: Baratas de um tamanho sobrenatural, pelo menos pelos meus padrões, a caminhar por todo o chão tal qual filme de terror e o que eu faço? Gritei a plenos pulmões assustada a pedir socorro? Armei-me em exterminadora com o meu sapato em riste? Nãooo, nada disso. Em bicos de pés, tal como se caminhasse em pleno campo minado, com todo o cuidado para não pisar nenhuma, segui o meu caminho e deixei-as ocupadas na vidinha delas.