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Mesmo Que apenas Uma só Gota Possa Ser Vista

Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Rebekka de Wit

The white cracker who wrote the national anthem knew what he was doing. He set the world “free” to a note so high nobody can reach it. That was deliberate. Angels in America,  
Tony Kushner


O meu pai e eu íamos a caminho do aeroporto. Eu ia passar um mês aos  Estados Unidos e ele fazia questão de se despedir de mim lá.  Ia a Charleston, uma pequena cidade no litoral da Carolina do Sul.  O meu pai perguntou-me como é que a cidade era, e eu apercebi-me,  nessa altura, de que não tinha ido à procura de quaisquer imagens no  Google. A única coisa que sabia é que tinha havido um tiroteio na cave de  uma igreja branca. Isto é, o edifício era branco, mas a comunidade era  negra.  
Um tiroteio não é, na realidade, a melhor palavra, pelo facto de  sugerir uma troca de tiros entre várias pessoas. Porém, não foi este o caso.  Havia apenas um rapaz, abaixo dos vinte, caucasiano e com acne, que  tinha cortado o cabelo antes de entrar na cave. Com o cabelo acabado de  cortar à tigela e com uma t-shirt às riscas azuis, foi à cave, participou dos  estudos bíblicos e, uma hora depois, sacou de uma pistola da sua bolsa de  cintura e baleou toda a gente que se encontrava naquele espaço.  
Poucas semanas após o tiroteio, os sobreviventes já tinham  perdoado o rapaz com o penteado à tigela, algo que ocorreu por acaso.  Isto é, não se tratou de uma decisão tomada coletivamente e de forma  consciente. Não tinha havido qualquer reunião prévia entre eles. Numa  primeira inquirição de testemunhas pelo tribunal, o juiz perguntou se os  sobreviventes tinham algo a acrescentar. Uma rapariga ergueu-se e disse  que sentia dor no corpo inteiro, mas que ia perdoá-lo, acabando os  restantes sobreviventes por se deslocar ao microfone e dizer mais ou  menos a mesma coisa.  
O meu pai disse que não era possível perdoar no espaço de poucas  semanas. Algo como isto, pelo menos. «Não acredito que se trate de um  verdadeiro perdão.» Fizemos o check-in da minha mala e, de seguida,  bebemos um batido. Não fiques a matutar nisto, OK?» prosseguiu.  «Aquilo que quero dizer é que não deves ter grandes expectativas acerca  do perdão. Para muita gente, perdoar não é mais do que aceitar que o  passado não pode ser alterado.» 
«Isso é da Oprah?» 
«O quê?» 
«Essa citação.» 
«Não.» 
«A Oprah disse sensivelmente o mesmo do perdão.»

Soltou um sorriso, disse que a Oprah não parava de o citar e deu-me  alguns lápis ainda por afiar.  
A igreja estava fechada quando cheguei. Na porta estavam flores  penduradas que já se encontravam mortas há alguns meses. Quando, no dia seguinte, voltei a bater à porta da igreja, à volta de  vinte pessoas estavam prontas a iniciar a hora semanal de estudos bíblicos, e  eu fui convidada a participar. Junto à porta, havia vigilância policial e  ambos os agentes tinham uma Bíblia ao colo. Eu trazia comigo um caderno  em branco, o qual pus na mesa à minha frente. Tinha-o comprado antes da  minha viagem. No topo da primeira página, tinha escrito «perdão», como  se estivesse a pensar que ia fazer um curso. 
A palavra «Jesus» foi de tal forma repetida durante os estudos  bíblicos, que me questionei se algo mais seria dito no caso de a palavra  «Jesus» ser uma palavra proibida.  
Acho que o meu pai me tinha alertado que as comunidades de lá  eram «bastante evangélicas». Não sei exatamente qual era o significado  disto. Pelo menos, sabia que não podia perguntar se era possível «deixar  Jesus, por breves momentos, de fora», algo que me controlava para não  dizer. Aqui, Jesus jamais é deixado de fora.  
Havia outra mulher branca nos estudos bíblicos. Trazia consigo um  documento plastificado em formato A4 junto ao peito, onde se podia ver  os rostos das nove pessoas abatidas a tiro. Tinham um aspeto esverdeado.  Ela explicou que a folha tinha ficado pendurada na porta do frigorífico  desde o tiroteio — seis meses atrás — e que, por entrar tanta luz natural na  cozinha, tudo lá, pouco a pouco, se vai descolorando.  
«E agora temos uma boa surpresa», disse o pastor, olhando para a senhora,  após os estudos bíblicos. 
Ela acenou com a cabeça, levantou-se e caminhou em direção a uma  mesa pequena, onde estava uma maqueta gigantesca da igreja onde nos  encontrávamos. Eu, pelo menos, pensei que se tratava de uma maqueta.  
«Passei três semanas de volta deste bolo», disse. O lábio inferior  começou a tremer. «Os atentados de junho mexeram bastante comigo.  Bastante mais do que aquilo que vocês, provavelmente, poderão imaginar,  e esta folha já se encontra, há seis meses, pendurada na porta do meu  frigorífico.» Ela parou de falar para chorar. Era o maior bolo que já tinha  visto em toda a minha vida. 
«Peço desculpa», disse. «Refleti imenso tempo naquilo que podia fazer  para vos mostrar o quanto esta situação me afetou.»

À volta da igreja, tinha criado um jardim de maçapão, com nove  árvores de Natal feitas de maçapão, uma para cada vítima. Nas árvores  encontravam-se pombas brancas de maçapão: uma para cada vítima. Uma  lágrima caiu sobre uma das pombas. As suas lágrimas eram negras da  maquilhagem que trazia. «Peço desculpa», disse. Uma outra pessoa  começou a chorar. «Peço imensa desculpa.» 
O pedido de desculpas dizia respeito às pombas, as quais pareciam  estar debaixo de lama. Porém, por breves momentos, pensei que ela se  referisse ao todo. O todo que faz partir o coração, mesmo que apenas uma  só gota possa ser vista.  
«As luzes das árvores de Natal não são comestíveis», disse. À minha esquerda, outra pessoa começou a soluçar. Tratava-se do  porteiro, que tinha encontrado todos os mortos. Disse que estavam  empilhados quando os encontrou, pelo que ficou a pensar que estariam a  cantar uma canção de harmonia quando foram baleados.  Fiquei a pensar naquilo que alguém tinha dito, que um negro na  América tem de fazer do rosto um punho, e comecei a questionar-me se o  perdão teria alguma coisa que ver com isto: com a recusa em fazer do rosto  um punho.  
Também a senhora continuava a chorar.  
Ia secando as lágrimas com o agitar da folha com os rostos  descolorados das vítimas do tiroteio. Não se ouvia nenhum ruído.  Durante este momento de silêncio, meti o meu caderno no meu  saco. Tinha-me deslocado ao local para compreender aquilo que tinha  sucedido e que, por via do perdão, não voltaria a suceder. Por outras  palavras, tentar saber se o perdão tem o poder de impedir algo, de impedir  futuros desastres. Só aquilo que aconteceu é que ainda estava presente.  O pastor convidou-me a comparecer na igreja na semana seguinte.  Teria lugar um memorial especial. 
Combinei com a senhora do bolo irmos juntas e passei o resto da  semana praticamente a viajar de autocarro, de lugar para lugar, de  entrevista para entrevista. No autocarro, era sempre a única branca e o  condutor sempre a mesma pessoa. Desta forma, descobri que se chamava  Tom e que nunca tinha causado nenhum acidente de autocarro.  
Descobri que a comunidade religiosa tinha ficado bastante dividida  por causa da ação de perdão. 
Famílias deixaram de se falar, pelo facto de uma irmã ter perdoado,  mas a outra ainda não se encontrar preparada para tal. Uma das irmãs  surgiu na primeira página da Time Magazine e foi ao programa da Oprah,  enquanto a outra não foi convidada para nada, e desde então as irmãs não  se falam. A segunda irmã não perdoou a primeira por esta ter perdoado.  

A igreja estava a abarrotar durante o memorial. Uma pessoa dos  estudos bíblicos contou-me que todos os membros da igreja continuavam  a ir à missa, apesar de já não se falarem.  
Reparei que o bolo estava no altar. O pastor esperou que se fizesse  silêncio e disse:  
«Encontro-me em solo sagrado. Esta igreja foi construída por  escravos e filhos de escravos que foram queimados neste pedaço da terra.  Nas suas cinzas, esta igreja foi novamente erguida. Os seus filhos cantaram  neste pedaço da terra. Locais de tragédias profundas e excruciantes têm o  potencial de se tornarem sagrados. Não estou a dizer que esta igreja seja sagrada, mas encontramo-nos num cemitério. Sagrado este pedaço da terra,  quero eu dizer. Sagrada a forma como alguém abriu o portão da cave e,  com um balde e algum material de limpeza, começou a limpá-la. Sagrado o  balde com sangue, lixívia e lágrimas.» 
O pastor deu uns passos em direção ao bolo e disse: «E sagrado este  bolo.» 
«Há algo que fez este bolo, e é a mesma coisa que reconstruiu esta  igreja. E é precisamente esta coisa que nos pode fazer nascer, vez após vez.  Iremos comer deste bolo após a cerimónia, porque amanhã já não estará  bom. E eu acredito que isto se aplica a tudo aquilo sagrado que fica na  forma por demasiado tempo. E eu não sei o que irá acontecer depois disto.  Quantos de nós irão morrer ou ter de morrer até termos encontrado uma  tragédia suficientemente grande para nos servir a todos. Amém.» 
O pastor gesticulou para nos levantarmos e cantarmos. Eu estava ao pé de  uma senhora. Não sei que idade teria, mas dava ares de ser bastante mais  velha do que o movimento pelos direitos civis. Tinha um sinal no pescoço  de onde brotavam pelos crespos e grisalhos. Fazia lembrar uma pequena  escova de arame. 
Cantámos a «Noite Feliz», e eu desafinadamente. Não conseguia  encontrar o tom. Algures perto da parte «Ó senhor», ouvi uma segunda  voz. A senhora ao meu lado estava a cantar a minha segunda voz  desafinada. Era bonita a forma como cantava, pelo que parecia que  também eu conseguia cantar bem.  
«Ouviu isto?», perguntou posteriormente. «Duas pessoas fora de  tom em perfeita harmonia.» 
Julgo que, se fosse possível fazer do perdão uma melodia, tal soaria  como nós as duas agora.  
No fim da cerimónia, o pastor partiu a torre do bolo de maçapão em  pequenos pedaços. Surgiram tabuleiros com café e toda a gente se levantou  para comer um pedaço de bolo e beber café.  
Fui à rua. 

Estava ao sol, encostada à porta. 
Sentia-me envergonhada pelo pouco que tinha levado para o serviço  religioso, para os estudos bíblicos, para a América. 
Tinha um caderno em branco, uma mochila cheia de desconfiança e  um livro com o título Cheap Grace, que tinha recebido do meu pai. O  termo utilizado no título do livro foi concebido pelo membro da  resistência e teólogo Dietrich Bonhoeffer, através do qual ele pretende  transmitir que não pode haver perdão sem arrependimento.  
«E se o arrependimento nunca surgir?», perguntou o porteiro, e eu  não sabia o que dizer. O arrependimento, muito provavelmente, nunca  viria a surgir. 
Já nem sei se tinha sido a minha própria desconfiança que tinha  trazido comigo ou algo que me tinha sido incutido, tal como as mães põem  uma maçã a mais no saco de uma criança que está de partida. Desconfiança  como mecanismo de segurança. Como uma forma de sempre conseguir  sobreviver. Julgo que tinha boas intenções quando me propus a lançar luz  sobre o perdão de Charleston.  
Porém, não só me juntei a uma lista de muitos que o tinham tentado  fazer como também me apercebi de que, ao lançar luz sobre os  acontecimentos, estes acabam por, gradualmente, mudar de cor. Lançar  luz não significa apenas tentar compreender, mas também querer ser capaz  de explicar a um público — o público da Time Magazine, por exemplo —  que se mostra desconfortável, descrente ou mesmo desconfiado em relação  ao perdão. Assim, com as minhas questões — ou, por extensão, todas as  questões que de uma forma ou de outra têm que ver com a questão de  saber se tudo isto é mesmo real —, acordo algo adormecido, mudo uma  trajetória, enfraqueço uma conexão.  
E se as questões tiverem reproduzido desconfiança, é possível, num  estado como este, proceder a uma anatomia do perdão? Será desejável fazer  isto? Será desejável submeter tudo aquilo que acontece a uma lupa gigante,  correndo-se o risco de que tudo aquilo que se encontre por baixo — e que  ainda é um pouco real — venha a queimar-se através da mesma?  
Apanhei o autocarro em direção à casa onde me encontrava hospedada,  cumprimentei o condutor e fiquei em pé na dianteira. Tinha havido um  acidente e estávamos parados junto a um painel publicitário em que um  
homem de raça branca, vestido de robe, observa os contornos dos telhados  no céu de uma cidade com um maço de cigarros eletrónicos na mão. No  painel estava escrito: «Recupera a tua liberdade.» 
Perguntei ao condutor se ele sabia o significado de perdão.  Ele riu-se e respondeu: «Com certeza que sim!» 

Perguntei-lhe se ele alguma vez tinha tido de perdoar, a que ele respondeu,  com um tom de voz como se estivesse a cantar uma canção de blues ritmada: «Minha querida! Oh minha querida, eu tenho de perdoar todo o  santo dia!», e quem me dera conhecer a canção, para saber em que  momento podia entrar.

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