Até hoje não sei bem o que estava a fazer nas ilhas. De que estava à procura? Sei só o que deixei para trás. O país que me deu o passaporte. A mulher que me deu a vida. Tantas coisas que podia comprar com dinheiro. O mundo que eu não conseguia e não sabia mudar.
A água do mar estava morna. Ao anoitecer, as ondas resplandeciam repletas de plâncton. Depois de tantos anos de viagem, já não sabia reconhecer bem as docas entre palmares onde normalmente costumava apanhar os sucessivos barcos. Fiquei confusa com os nomes das ilhas, todos começados por palavras como koh e nusa. Fiquei confusa com os olhos escuros e a roupa colorida dos outros passageiros. No entanto, no meu percurso às vezes encontrava pessoas que também estavam à procura, tal como eu. Trocávamos algumas palavras. “De onde és? Para onde vais?” eram palavras de saudação e de despedida ao mesmo tempo, sabíamos bem que não tinham qualquer importância. Até encontrar o Tomasz, estava a procurar de olhos fechados.
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Sentou-se ao meu lado numa taberna perto das docas. O sol estava a desaparecer lentamente no horizonte. As esposas dos pescadores estavam ocupadas a limpar as redes pesqueiras depois de um longo dia de pesca. Uma mulher pequenininha ao lado do carrinho de macarrão lavava loiça de plástico. Não consegui decifrar o rótulo na garrafa de whisky local. Era escura tal como o mar, que sempre murmurava à distância.
— Sou da ilha — disse, respondendo à minha saudação. Ao ouvir a minha pergunta: “de qual?” ergueu as sobrancelhas. — A ilha não tem nome. Tal como as pessoas que lá vivem.
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Olhava-me gentilmente por baixo da sua franja escura. A t-shirt mostrava o seu corpo magro e musculoso. Era difícil adivinhar a sua idade. A pele queimada pelo sol mostrava as primeiras rugas. Senti que naquela noite, nesta mesma taberna, queria saber mais sobre ele. Disse que nasceu perto do lago. A sua mãe estava deitada no meio de lençóis brancos. As mulheres mais velhas seguravam a sua mão e enxugavam o suor da sua testa. As tochas estavam acesas. Os outros habitantes reunidos ao redor, dançavam e cantaram pela noite dentro. Quando finalmente veio ao mundo, todos queriam segurá-lo por alguns instantes. A nova vida cheirava a mistério.
Passou os primeiros anos de vida com os pais. Bebia leite da mãe e recebia o amor incondicional das pessoas que o trouxeram ao mundo. Quando fez três anos, mudou-se para a sala de visitas para ficar lá junto de outras crianças. Toda a gente estava disponível para eles, qualquer um que quisessem. Cada um tinha a possibilidade de sentir amor e intimidade, nojo e irritação. Os pais podiam ir vê-lo quando quisessem, caso ele também quisesse.
O seu pai e a sua mãe foram das poucas pessoas que a comunidade autorizou a trazer uma criança ao mundo. A comunidade considerou-os suficientemente responsáveis, estáveis emocionalmente e cientes das suas limitações. Mesmo assim, o seu amor não sobreviveu aos três anos de proteção e acolhimento da criança. Quando Tomasz saiu de casa para ficar na sala de visitas, terminaram o namoro e conheceram outras pessoas.
— Na ilha não há famílias — explicou ao ver a minha reação cheia de surpresa. — Cada um pode ter tantas relações quantas quiser. Há casais que se apaixonaram há muitos anos e continuam juntos, vivendo um para outro. Mas há também outras pessoas que saltam de namoro em namoro, nunca sentindo a necessidade de ir mais longe. E há aqueles de coração tão grande que podem amar muitas pessoas ao mesmo tempo, tanto homens como mulheres. A ilha é para qualquer um. Quando Tomasz era pequeno não sabia brincar com outras crianças. As pessoas na sala de visitas sabiam disso e deixavam-no andar por onde queria. Tinham a certeza que cada pessoa que o encontrasse iria tomar conta dele. Na ilha não havia estranhos, por isso, ninguém podia magoá-lo.
Tomasz gostava muito de olhar para os habitantes. Alguns tinham a pele clara e sensível, embora o sol ainda queimasse. Outros tinham um tom de pele da cor do chocolate e cabelo preto como o carvão. Havia pessoas de cabeça rapada como monges, outros tinham cabelo até aos pés e nunca se penteavam. Uns tinham vestidos elegantes, batons que brilhavam nos seus lábios e sombras nas suas pálpebras. Para outros, uma faixa de tecido nos quadris bastava.
As casas onde moravam eram tão diferentes quanto eles. Construíram-nas com as suas próprias mãos, com o que lhes deu a ilha e o que o mar deixou na praia. Uns moravam nos simples yurts feitos de linho e varas fortes, outros compactavam a palha em blocos quadrados para mais tarde construir andaimes complicados. Nos lugares que deixaram para trás havia diferentes costumes. Na ilha nenhuma casa era melhor do que outra. Nos seus muitos passeios Tomasz costumava parar ao lado dalguma casa, ajudando a cavar fundações e a empilhar a palha.
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— Nunca foste à escola? — perguntei, mesmo pressentindo qual seria a sua resposta. Tinha a impressão de conhecer a ilha. Tinha a impressão de ter no meu interior a imagem dela, o seu cheiro, o calor da sua terra. Sentia-a em mim tão claramente como o calor do whisky que agora começava a circular no meu corpo.
Tomasz sorriu.
— Os habitantes ensinaram-me o que sabiam. Eles sabiam como fazer a água fluir no subsolo e sobre ele. Quando chegaram à ilha não havia nela nem árvores nem lago. A terra vermelha estava rachada por falta de humidade, as fontes subterrâneas tinham secado há muito tempo. As pessoas que tinham vivido lá derrubaram as florestas para vender a madeira, exauriram a terra com colheitas intensivas. Quando nada mais sobrou para roubar da ilha, mudaram-se para outra.
Os novos habitantes ouviram a terra. Fechavam os olhos e esmagavam nas mãos os seus caroços duros. Construíram na ilha terraços, valas e represas que diminuíram o fluxo da chuva em direção ao mar. A água infiltrou-se novamente na terra sedenta. Depois de alguns meses, os riachos começaram a correr — primeiro no subsolo, depois sobre a terra. Depois de um ano, no meio da ilha, começou a surgir o lago, trazendo o verde.
Quando isto aconteceu, os recém-chegados formaram um círculo e olharam-se nos olhos. Juraram que a terra nunca mais sofreria pela presença do Homem, que seriam tão cuidadosos quanto cervos num prado. Pode acontecer que, ao correr, os seus cascos duros pisem num arbusto de absinto, mas até à noite todas as suas folhas endireitar-se-ão.
Nos campos cresceram cereais, com os quais se podiam fazer pães que cheiravam bem. Pedaços de terra que geravam feijão, tomate, beringela e vegetais exuberantes. Nas árvores, viam-se os vermelhos frutos da mangueira e da macieira. Os habitantes da ilha sabiam bem que podiam colher da terra apenas um pouco mais do que precisavam. Os produtos que sobravam eram trocados nas ilhas vizinhas por tela, ferramentas e espelhos.
Eles ensinaram o Tomasz a criar estruturas complexas a partir de espelhos, que refletiam a luz do sol para que aquecesse as enormes panelas em que cozinhavam. Ensinaram-no a construir painéis que absorvem energia. A energia era devolvida às lâmpadas quando escurecia ou aos fogões quando soprava um vento frio do mar.
Sabiam amar as “pessoas animais”. Ensinaram o Tomasz que nunca pode matar nenhuma delas. Na ilha, vacas e cavalos pastavam na natureza. Quando ele tinha de ir para o outro lado da ilha, usava as costas dos cavalos. As vacas davam-lhe leite quando estava doente e não se conseguia recuperar. No entanto, ele tinha sempre de pedir consentimento ao animal. Olhava-o intensamente nos olhos e perguntava. Os habitantes mostravam-lhe como ouvir a resposta.
Terminado o período de aprendizagem, o Tomasz estava pronto para trabalhar como os restantes. Na ilha havia sempre qualquer coisa para fazer: semear ou colher as safras, preparar comida, limpar as sobras, construir casas, mantê-las em boas condições. Ninguém recebia mais trabalho do que os outros. Ou seja, alguém o queria. Quando acabava o trabalho, durante o resto do dia e da noite podia fazer o que gostava. E ele adorava tocar guitarra. Os sons harmónicos despertavam no seu coração uma saudade desconhecida. Adorava ficar sentado na praia e olhar para o ritmo calmante das ondas. Direcionava a sua atenção para o seu interior, para o bater do seu coração ou para o exterior — para o bater do coração da natureza. Na ilha, Deus estava em todo o lado e ao mesmo tempo não estava em lado nenhum. Havia um templo debaixo de cada árvore e de cada pedra. Tudo era perfeito. Exatamente como era, como é e como continuará a ser.
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— Nem todos os lugares são assim — disse, pensando no lugar que deixei para trás.
— Sei disso — Tomasz sorriu tristemente. Uma sombra, quase invisível passou pela sua cara — os meus pais contaram-me histórias do mundo de onde vieram. Das pessoas que constroem cidades, onde há pessoas que trabalham 12 horas por dia e outras que não trabalham. E que alguns acumulam grandes riquezas enquanto outros morrem de fome. De que há pessoas que matam só para ficarem com o que é dos outros. Sobre um lugar onde morrem pessoas e onde morrem árvores, porque as pessoas não sabem conviver com elas.
Os pais do Tomasz lembravam-se ainda dos títulos dos filmes que viram no cinema. Do contacto da espuma com a pele no banho. Do sabor do vinho branco gelado numa tarde quente. Só que na ilha queriam esquecer-se de tudo isso. Sabiam bem que um dia chegará a vontade de ter mais, chegará a tentação de cortar as árvores e vender a sua madeira. De fazer a terra dar mais e mais frutos. Para se esquecerem, os habitantes da ilha encontravam-se uma vez por dia em pequenos grupos. Um de cada vez, cada um ia para o centro do círculo e confessava os seus mais profundos sentimentos. “Eu desejo”, diziam, “sinto luxúria”, “sinto inveja” enquanto dos olhos saiam-lhes lágrimas ardentes. Nesse momento, os restantes aproximavam-se muito deles, abraçavam-nos firmemente e pressionavam os seus rostos contra os seus pescoços. Ficavam assim o tempo necessário para a dor diminuir e, por fim, afastavam-se. Tomasz participou nessas sessões, mas nunca ia para o centro. Não tinha lembranças. Não sentia inveja, não desejava. Ouvia os velhos sussurrarem que quando o último dos que se lembram morrer já não serão precisas sessões.
— Achas que eu poderia navegar para a ilha? — perguntei timidamente ao Tomasz. Estava já completamente escuro, na escuridão mal podia ver o branco dos seus olhos. O ar cheirava a fruta podre, vibrava com o canto das cigarras. As esposas dos pescadores há muito tempo tinham ido para casa. Uma mulher esbelta colocou o carrinho de macarrão num canto e cobriu-o com uma lona. Senti com cada vez mais certeza que a ilha é o lugar de que estou à procura, que é o lugar que todos procuramos.
— Hoje já não sei como chegar lá — disse Tomasz lentamente —, mas sei que é possível.
Às margens da ilha chegavam barcos, trazendo consigo os viajantes casuais. Na ilha ninguém lhes perguntava de onde vinham e o que procuravam ali. Ninguém estava interessado nas terras onde nasceram nem nas ideias que tinham na cabeça. Ninguém, à exceção do Tomasz.
Os habitantes normalmente deixavam os viajantes partilhar comida com eles. Mostravam-lhes a ilha. Respondiam às perguntas, mesmo se as achassem ridículas. Mas, ao pôr do sol, levam-nos à praia, diretamente para os barcos. Nem uma única mão se erguia num gesto de despedida. Também ninguém entrava no barco com eles.
— Eu fui o primeiro — disse Tomasz e ficou calado, a olhar para a noite.
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Quando disse que queria emigrar — ainda se recorda do som dos gongos — reuniram todos na sala perto do lago.
Na ilha ninguém tem poder sobre uma outra pessoa. Não foram escritos direitos que iriam governar a vida dos habitantes. Na verdade, há só uma única regra que é aplicável: cada um pode fazer o que quiser contanto que não incomode o outro. Às vezes acontecia que duas pessoas se atrapalhavam. Alguém colocou uma casa muito perto do vizinho. Uma outra pessoa incomodava com o seu comportamento barulhento. Neste caso, os dois reuniam-se e discutiam até encontrarem uma solução. Quando era difícil para eles comunicarem, pediam conselhos a qualquer pessoa da ilha. Já houve momentos em que reuniam todos ao sinal dos gongos. Houve um ano em que precisavam de mais materiais de construção do que o costume. Tinham de pensar em como arranjá-los. Houve outro ano em que a terra não dava frutos suficientes e que tinham de pensar em como sobreviver. Os habitantes sentavam-se, então, num grande círculo e discutiam até todos estarem satisfeitos com a solução. Às vezes, isto durava dias inteiros, outras vezes semanas.
Mas a emigração do Tomasz foi uma questão de outra dimensão. Hoje, já não se consegue lembrar de quanto tempo discutiram até todos chegarem a um consenso, mas não houve muitos que tivessem ficado totalmente satisfeitos. Os habitantes mais velhos da ilha tinham lágrimas nos olhos enquanto preparavam o barco para levar Tomasz para o mar. Mas todos sabiam que se dissessem “não” a ilha deixaria de ser a ilha.
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— Quando entrei no barco não havia nenhuma mão a erguer-se num gesto de despedida — disse, mas não se ouvia pena na sua voz. No horizonte, o céu iluminou-se anunciando um novo amanhecer. Passaram por nós os primeiros pescadores, prestes a levar ao mar outros barcos tão diferentes dos barcos em que vamos entrar. Os seus barcos voltavam sempre à mesma margem, esta margem de onde partem de manhã. Nós estávamos sentados no porto como num bardo, presos entre o sonho e a realidade, entre um mundo e outro.
— Para onde vais? — perguntei na despedida.
— Não sei — encolheu os ombros — só sei o que deixei para trás.
(O pensador inglês Thomas More descreveu a ilha de Utopia — um bom lugar ou um não lugar— até ao qual navegou o viajante português Hitlodeu no século XVII. É bem possível que hoje em dia ele tivesse chegado a essa ilha).